Ninguém sabe se o próximo indicado de Lula ao STF será mulher ou homem, negro ou branco, conservador ou progressista. Mas de uma coisa podemos ter certeza: será garantista. E garantista é entendido aqui não como a mera proteção das garantias legais de um acusado, e sim a absolutização de toda e qualquer tecnicalidade processual que possa atuar em favor do réu, sem qualquer sopesamento de outros valores e princípios do direito. Na prática, esse garantismo extremo tem resultado na impunidade para criminosos de colarinho branco, o que coloca em xeque sua legitimidade social.
Num texto de 2017 que marcou época ("A Razão sem Voto: O Supremo Tribunal Federal e o Governo da Maioria", publicado no livro "A Razão e o Voto"), o ministro Luís Roberto Barroso deixou claro qual era sua visão dos diferentes papéis da Suprema Corte. O primeiro —e menos polêmico— é o papel contramajoritário: fazer valer os limites da Constituição sobre as leis votadas no Congresso.
O segundo papel é o representativo: mesmo perante a inoperância do Congresso, entender que a leitura da Constituição não se dá no vácuo social e precisa responder às demandas da sociedade. Havia, na época, um forte sentimento de combate à corrupção, e o Supremo tivera parte nisso, decidindo por exemplo pela prisão após condenação em segunda instância.
O terceiro papel é o iluminista: fazer valer certos valores humanos (e consoantes com nossa Constituição) mesmo que eles fossem contrários tanto ao Congresso quanto à opinião pública. Foi graças a esse papel que o Brasil aprovou, desde 2011, algo básico como o casamento homoafetivo.
Os tempos mudaram. Hoje uma maioria no Supremo vota contra o combate à corrupção. A mudança não se deve apenas à troca de ministros, mas também a uma real mudança de posicionamento de alguns ministros. Seria reação aos ataques do bolsonarismo?
Ao mesmo tempo, o Supremo —em reação aos ataques do bolsonarismo— vem adotando uma postura bastante punitivista para com tudo que possa ser interpretado como um risco à democracia, desde os participantes das invasões de 8 de janeiro até a reprodução de teses golpistas nas redes.
Os métodos e a dureza hoje deplorados na Lava Jato são aceitos na defesa da democracia. Cada decisão —tanto para soltar quanto para prender— tem embasamento técnico, o que não significa que decisões diferentes não o teriam. É no espaço entre argumentos juridicamente válidos que mora o posicionamento político.
Foram voto vencido as posições moderadas de Barroso e Mendonça, que resultavam numa pena consideravelmente menor para os envolvidos no 8 de janeiro. No fim das contas, o invasor Aécio Pereira levou uma pena maior que Elize Matsunaga (cuja pena foi reduzida pelo STJ), sem chance de recurso.
Bem ou mal, o papel iluminista depende do papel representativo. A população engole decisões contrárias às suas crenças morais mais facilmente se enxerga a corte também como parceira na busca de fins socialmente partilhados. O mesmo Supremo que legalizou o aborto dos anencéfalos punia políticos corruptos. Agora, o Supremo que talvez libere o aborto antes de 12 semanas (pauta com a qual concordo, por sinal) é o mesmo que solta políticos corruptos e até traficantes.
O mesmo Supremo que soltou e devolveu direitos políticos a Lula e toda a classe política envolvida na Lava Jato agora julga e comanda inquéritos que podem resultar na prisão de Bolsonaro e trata com máximo rigor quem foi por ele fanatizado. Tem sido, por isso, cada vez mais visto como um ator político com lado. E isso é danoso para sua legitimidade. Como sempre ocorre quando o pêndulo exagera para um lado, ele acaba voltando com força.
2 comentários:
Sei.
Perfeito!
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