CartaCapital
A desigualdade social esgueirou-se silenciosa
nos subterrâneos da economia globalizada, revelam incômodos relatórios
Nas primeiras semanas do Ano da Graça de
2024, os desassossegos do mundo foram agravados por choques desferidos por dois
relatórios incômodos. Um deles, o mais perturbador, nasceu nas oficinas
da Oxfam International
com o propósito de ser apresentado na reunião anual do Fórum Econômico de
Davos. O outro foi produzido nas casamatas conservadoras, mas atentas, do Fundo Monetário Internacional,
o FMI.
O texto da Oxfam desdobra o tema desigualdade em suas múltiplas dimensões contemporâneas, sempre ancoradas nas formas sociais e econômicas que realizam a natureza do capitalismo. O trabalho dos economistas do FMI ostenta preocupações com o destino dos trabalhadores alvejados pelo avanço da Inteligência Artificial.
É oportuno reproduzir um trecho-resumo do
relatório da Oxfam: “O poder e a influência dos super-ricos permitiram
reduzir-lhes a parcela da economia que vai para a maioria, aumentando
exponencialmente a parte recebida pelos poucos donos do capital, que são
predominantemente os mais ricos em
todas as sociedades. O restante desse informe trata do poder das
grandes empresas e da estreita relação entre a explosão desse poder e o
crescimento da desigualdade global. O Capítulo 2 explora o papel da
concentração de mercado e dos monopólios na promoção do poder das grandes
empresas e da desigualdade. O Capítulo 3 examina três formas pelas quais esse
poder é usado para impulsionar a desigualdade: pressionando os trabalhadores e
enriquecendo acionistas abastados, evitando pagar impostos e privatizando o
Estado. Mostra, também, como o poder das grandes empresas está acelerando o
colapso climático, explorando e ampliando, assim, as desigualdades econômicas,
de gênero e de raça. O Capítulo 4 apresenta recomendações para enfrentar o
poder das grandes empresas e construir sociedades mais igualitárias”.
Nascida do ventre fertilizado pelo
intercâmbio entre as megaempresas e grandes bancos “globalizados”, a
desigualdade avança mundo afora. A galera das finanças retruca com a soberba e
o descaso habituais. Para a turma da bufunfa, o que os deserdados da fortuna
pensam, sentem ou reivindicam são deformações nascidas do egoísmo “populista”
dos ignorantes, em contraposição ao egoísmo racional e esclarecido dos senhores
do universo.
Em seu livro A Crise do Capitalismo, George
Soros faz um depoimento esclarecedor sobre sua experiência de investidor nos
mercados financeiros: “Como participante anônimo dos mercados financeiros nunca
tive de pesar as consequências sociais de minhas ações. Estava consciente de
que, em algumas circunstâncias, os efeitos talvez fossem danosos, mas
justificava minha negligência em relação às consequências prejudiciais pelo
fato de estar jogando conforme as regras. O jogo era muito competitivo e, se
ainda me impusesse limitações adicionais, terminaria derrotado. Além disso,
percebi que meus escrúpulos morais não fariam qualquer diferença para o mundo
real, em face das condições de competição eficaz ou quase perfeita
predominantes nos mercados financeiros; se me abstivesse de agir, outra pessoa
assumiria o meu lugar”.
Dont hate the player, hate the game, canta o
rapper americano Ice-T. Como dizia o historiador Fernand Braudel, os homens são
muito semelhantes às formigas. A despeito de suas pretensões de decidir o seu
destino, parecem, na verdade, submetidos a processos impessoais que, de tempos
em tempos, abrem brechas para a ação coletiva e individual, espaços que logo se
fecham para consolidar práticas e estruturas.
Na posteridade dos anos 1970, no crepúsculo
da era do capitalismo regulado e solidário do pós-Guerra, reemergiu a grande
narrativa dos valores da concorrência e do mérito que estimula os cidadãos a se
tornarem “empreendedores de si mesmos”, proprietários do seu “capital humano”.
Os mercados de trabalho estão infestados pelo
vírus da precarização
Essa aspiração bateu de frente com as
realidades da exportação de empregos na manufatura globalizada, colidiu com a
centralização do controle nas megaempresas “financeirizadas”, trombou com os
avanços da Inteligência Artificial e da automação. Os choques deflagraram uma
forte desvalorização do estoque de capital humano (sic), mesmo o cultivado com
os empenhos da educação. Os mercados de trabalho estão infestados pelo vírus da
precarização e pela continuada perda da segurança outrora proporcionada pelos direitos
sociais e econômicos.
As classes médias, sobretudo nos EUA, mas
também na Europa, ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as
realidades cruéis do declínio social e econômico. A individualização do
fracasso já não consegue ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela
desordem do sistema social. O indivíduo do iluminista e filósofo moral Adam
Smith é definido a partir de sua liberdade exercida mediante a propensão humana
natural para a troca. A motivação egoísta do intercâmbio de mercadorias, no
entanto, está ancorada na simpatia mútua, na sociabilidade enraizada na
inclinação benevolente para o outro.
Nas trevas da economia vulgar, a versão
smithiana do indivíduo socializado cedeu lugar às hipóteses “científicas” que
suprimem as diferenças entre os papéis sociais dos indivíduos concretos para
aprisioná-los na abstração do homo economicus, o ser racional e maximizador da
utilidade. A culminância do solipsismo econômico é o “agente representativo”
dos novo-clássicos, um Robinson Crusoé de causar inveja a Daniel Defoe,
ultrapassado em suas fantasias por Robert Lucas & Cia. Diante das
realidades expostas nos relatórios, a teoria econômica dos riquinhos, ricos e
ricaços cuida de produzir e reproduzir fantasias incumbidas de justificar o
existente.
No início dos anos 1980, Ronald Reagan e
Margaret Thatcher proclamavam que o Estado era o problema, não a solução. Eles
preconizavam a redução de impostos para os ricos “poupadores”. Acusavam os
sistemas de tributação progressiva de desestimular a poupança e debilitar o
impulso privado ao investimento. Os sindicatos “prejudicavam” a economia e os
trabalhadores ao pretender fixar a taxa de salário fora do “preço de
equilíbrio”. Era preciso “acabar com tudo aquilo”.
Liberada, a velha toupeira do capitalismo
cavou fundo e redefiniu em poucos anos a distribuição espacial da produção, do
comércio, dos fluxos de capitais. Em sua fúria criadora e destrutiva, entregou
os mercados financeiros às suas insanidades, o que impulsionou a formação de
oligopólios globais, centralizando o controle da produção em poucas empresas e
promovendo a precarização em massa do emprego.
A desigualdade esgueirou-se silenciosa nos
subterrâneos da economia globalizada, enquanto seus acólitos midiáticos e
acadêmicos evangelizavam o público com as crendices sobre os mercados
eficientes e “competitivos” povoados por agentes racionais e otimizadores.
*Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.
2 comentários:
Brilhante! Novamente, Belluzzo mostra que não é apenas um dos grandes economistas brasileiros, mas também um grande ESCRITOR E PENSADOR! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar o trabalho deste grande brasileiro!
O nível do comentário!
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