Equilíbrio do INSS depende de reformar aposentadoria rural
O Globo
Mesmo com mudanças de 2019, gasto
previdenciário chegará a 18% do PIB até o fim do século, estima estudo
A reforma da Previdência que
passou a vigorar em 2019 consumiu duas décadas de debates. Demorou para ser
feita e, em meio a todo tipo de pressão para proteger categorias ou grupos
sociais, deixou de fora os trabalhadores rurais. Em estudo publicado pelo
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), os
economistas Fabio Giambiagi, Rogério Nagamine e Otávio Sidone afirmam que será
essencial tratar deles numa nova rodada de reforma previdenciária. Quanto antes
o Brasil discutir o assunto, menos custará para a sociedade.
De acordo com o estudo, a última reforma — da iniciativa privada, servidores federais e militares — reduziu a velocidade de crescimento do déficit previdenciário, mas foi incapaz de estancá-lo. Deu tempo para que sociedade, governos e Congresso buscassem construir consenso em torno de uma nova etapa de mudanças que, na opinião dos autores, deverão obrigatoriamente tratar da aposentadoria rural.
A julgar pelos números, não será possível
esperar mais duas décadas para implementar as novas mudanças. Os economistas
estimam que os gastos com aposentadorias e pensões, em torno de 8% do PIB em
2022, já exigem atenção dos administradores públicos e dos políticos. Mantidas
as condições atuais — já contando os efeitos da reforma de 2019 —, a despesa
total do INSS poderia
chegar a 18% do PIB em 2100. Isso equivale a aproximadamente todos os gastos da
União em 2023.
A Constituição de 1988 reduziu em cinco anos
a idade mínima para aposentadoria no campo em relação aos trabalhadores urbanos
(de 65 para 60 anos para os homens; de 60 para 55 anos para as mulheres). Foi
também alterado o piso do benefício rural: de meio salário mínimo para um
salário integral. Além disso, o poder de compra do salário mínimo quase
triplicou desde então. Levando em conta o aumento na expectativa de vida, os
economistas calculam que o benefício foi multiplicado por 5,5 em termos reais.
Tornou-se um programa social disfarçado.
A defasagem entre o que o INSS paga a
trabalhadores rurais e o que recebe em contribuição é gigantesca. Em 2022, o
Estado distribuiu R$ 163 bilhões e recebeu apenas R$ 9 bilhões, resultando num
déficit de R$ 154 bilhões ou 1,3% do PIB. Enquanto as aposentadorias e pensões
no meio rural equivalem a 20% dos gastos previdenciários, os trabalhadores em
atividades agrícolas contribuem com menos de 2% da arrecadação previdenciária
total.
Os economistas sugerem que a próxima reforma
aumente a idade mínima de aposentadoria no campo de forma paulatina,
respeitando direitos adquiridos. Uma das defesas do tratamento mais generoso
dispensado ao aposentado rural é que a atividade no campo é mais desgastante.
Eles contra-argumentam com a crescente mecanização da agricultura, que reduziu
o trabalho pesado ou, a depender da atividade, até o eliminou.
A análise chama a atenção para o
desequilíbrio financeiro da Previdência como um todo. Para reverter a
trajetória, é imprescindível começar a discutir desde já uma nova reforma que
contemple os trabalhadores rurais. Apenas a uniformização das idades de aposentadoria
entre cidade e campo seria capaz, de acordo com o estudo, de gerar uma economia
de R$ 900 bilhões em 30 anos.
Não deve haver nenhum empecilho para a
realização do aborto legal
O Globo
Em casos de estupro, risco para a mãe ou feto
anencéfalo, procedimento é um direito que não pode ser dificultado
Desde 1940, o aborto é
permitido no Brasil em situações específicas: nos casos de estupro ou quando a
gestação representa risco para a vida da mulher. Em 2012, por decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF), passou a ser autorizado também no caso de feto
anencéfalo (com malformação cerebral). Por mais que a questão desperte debates
acalorados, isso é o que diz a lei em vigor — e ela deve ser cumprida.
Por isso causam estranheza várias iniciativas
motivadas por convicções ideológicas, morais ou religiosas que, embora
legítimas num regime plural e democrático, não encontram respaldo na
legislação. É o caso de leis adotadas por estados e municípios ou de tentativas
de restringir a prática do aborto legal nos estabelecimentos públicos, que
acabam por levar a questão à Justiça desnecessariamente.
No mês passado, o governo de Goiás sancionou
uma lei determinando que, antes do aborto legal, o estado forneça à gestante
áudios do exame de ultrassom com os batimentos cardíacos do feto (a lei é
contestada no STF). Em dezembro, a Câmara Municipal de Maceió promulgara lei
semelhante, com o objetivo de dificultar o aborto legal. Entre outras ações,
previa que equipes multidisciplinares apresentassem às gestantes efeitos
colaterais do aborto como “pesadelos”, “depressão” e “remorso” (a Defensoria
Pública de Alagoas obteve na Justiça liminar suspendendo a norma). Em Santo
André, no ABC paulista, parte de uma lei que criava obstáculos para o aborto
legal foi suspensa pela Justiça de São Paulo.
A gestante que busca fazer o aborto permitido
por lei precisa enfrentar um périplo, pois o serviço público impõe toda sorte
de dificuldades. Em São Paulo, o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, referência em
aborto legal, suspendeu o procedimento em dezembro, sob o argumento de que
precisava aumentar a capacidade de realizar cirurgias. Mesmo depois de uma
guerra de liminares, o serviço permaneceu suspenso.
Em 2020, repercutiu em todo o país o caso da
menina de 10 anos, vítima de estupro, que precisou sair do Espírito Santo, onde
morava, para fazer no Recife um aborto autorizado pela Justiça. O caso ganhou
contornos absurdos quando o endereço do hospital, mantido em sigilo, foi
divulgado nas redes sociais, e grupos antiaborto protestaram na porta para
tentar coagir os médicos que fariam o procedimento.
Compreende-se que a descriminalização do
aborto suscite controvérsias, motivadas por convicções legítimas. Mas não se
trata de questioná-las. Trata-se tão somente de cumprir o que diz a lei.
Mulheres que se enquadram nos casos previstos têm direito ao aborto legal em
unidades públicas de saúde. Estados, prefeituras e hospitais não podem
interpretar a legislação de acordo com suas crenças. Uma coisa é emitir opinião
sobre o assunto, outra bem diferente é agir para tolher direitos legítimos. É
preciso levar em conta que as mulheres que recorrem ao aborto legal — vítimas
de estupro ou em condições clínicas graves — já padecem com enorme carga de
sofrimento. Aumentá-la é uma crueldade.
Urge apuração sobre alta dos precatórios
Folha de S. Paulo
Autoridades devem descobrir motivos da
escalada das dívidas judiciais, em vez de tentar esconder o problema na
contabilidade
A expansão acelerada dos gastos do Tesouro
decorrentes de derrotas judiciais só começou a merecer a devida atenção das
autoridades há menos de três anos, quando uma conta exorbitante de quase R$ 90
bilhões em precatórios foi apresentada para pagamento em 2022.
Ainda assim, a primeira reação foi tentar
varrer o problema para debaixo do tapete. Para que a despesa imprevista não
comprometesse o cofre em um período eleitoral, o governo Jair Bolsonaro (PL)
fez aprovar uma emenda constitucional que promovia o calote de parte dos
compromissos, adiando-os para os exercícios seguintes.
Era evidente que tal estratégia provocaria
uma bola de neve de dívidas acumuladas impagáveis. A gestão Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) fez o correto, portanto, ao conseguir que
o Supremo Tribunal Federal derrubasse a emenda, abrindo caminho para
a quitação dos montantes em atraso.
Felizmente, porém, o STF não autorizou o
propósito da administração petista de classificar parte dos pagamentos como
gastos financeiros —o que seria um truque de contabilidade mais uma vez
destinado a mascarar a gravidade de uma ameaça ao Orçamento.
Precatórios não são dívidas oriundas de uma
operação de crédito, como a tomada de um empréstimo. Eles resultam de
obrigações cotidianas, como salários, benefícios sociais e repasses a entes
federativos, que o governo deixou de cumprir —indevidamente, no entender da
Justiça.
Sua quitação, pois, deve ser considerada uma
despesa primária, e assim sujeita aos limites impostos pelas regras de controle
fiscal.
Em um exemplo eloquente de como tais encargos
têm se multiplicado, a Folha noticiou que só os precatórios de
pequeno valor da Previdência saltaram de
R$ 5,4 bilhões, em 2014, para R$ 19,5 bilhões no ano passado.
A maneira correta de lidar com a questão é
promover uma apuração rigorosa das causas dessa escalada. Cumpre averiguar,
entre outras possibilidades, se a máquina governamental tem falhado no
atendimento da clientela de seus programas —ou se há deficiências na defesa
judicial da União, até contra a detecção de fraudes.
Sabe-se, ao menos, que o governo criou uma espécie
de força-tarefa, abrangendo Ministério do Planejamento e Advocacia-Geral da
União, para examinar o assunto. Os resultados de um trabalho dessa
natureza visam naturalmente o longo prazo, o que não os tornam menos urgentes.
Fim aos supersalários
Folha de S. Paulo
É bem-vinda a intenção do governo de conter
as benesses do Poder Judiciário
Dados do Tesouro Nacional mostram que, em
2022, o Brasil
gastou R$ 159,7 bilhões com seu sistema de Justiça. Desse total,
82,2% foram destinados a remunerações de magistrados e servidores, incluindo os
do Ministério Público.
Com o montante, equivalente a 1,6% do Produto
Interno Bruto, lideramos um ranking de dispêndios públicos com tribunais de
Justiça entre 53 países para os quais há informações disponíveis, aí incluídos
ricos e emergentes. No grupo, a média é de 0,4% do PIB.
Fica clara aí a desproporção dos ganhos do
Judiciário ante a realidade brasileira —privilégios com os quais arcam os
contribuintes.
É bem-vinda, nesse sentido, a intenção
manifestada pela ministra Esther Dweck (Gestão), em entrevista à Rádio
Eldorado, de incluir os supersalários daquele Poder em uma proposta de reforma
administrativa —apesar da resistência petista ao tema.
Uma das distorções a enfrentar é a forma como
se calculam os vencimentos. Uma teia de regras e resoluções do próprio setor
beneficia seus profissionais.
Em dezembro de 2023, por exemplo, Dias
Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal, decidiu pela retomada do
pagamento do aumento salarial automático de 5% para juízes a cada cinco anos.
Até o presidente do STF, ministro Luís
Roberto Barroso, outrora um crítico dos supersalários, abriu o caminho para
diversos penduricalhos em sua primeira sessão à frente do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), alegando se tratar de uma equiparação a direitos dos integrantes
do Ministério Público.
As manobras têm alcançado também outras
carreiras do sistema. De 2019 a 2022, a conversão em dinheiro da licença-prêmio
no Ministério Público da União gerou
despesas de R$ 439 milhões, segundo estudo da Transparência Brasil.
A partir de dados do IBGE, a Folha mostrou
que juízes têm a
maior remuneração média entre 427 ocupações. Segundo o CNJ, a
despesa média por magistrado foi de R$ 69,8 mil mensais em 2022.
Não se discute que profissionais qualificados com tantas responsabilidades mereçam ser bem pagos. Os valores, no entanto, precisam estar enquadrados de forma clara e transparente nos limites fixados para o serviço público no Brasil, um país já iníquo em demasia.
Liberalismo sob ataque
O Estado de S. Paulo
Democracias e instituições liberais podem
estar abaladas pelo crescente poder de populistas autoritários, mas continuam
sendo o melhor caminho para reconhecer conflitos e resolvê-los
A revista The Economist contabilizou nada
menos que 76 países onde a população terá a oportunidade de votar neste ano,
definindo 2024 como o maior ano eleitoral da história. Mais de 4 bilhões de
pessoas vivem nesses países que irão às urnas, entre eleições presidenciais,
como nos EUA, ou disputas municipais, como no Brasil. Segundo a publicação, em
teoria, essa constatação deveria representar um ano triunfante para a
democracia. Na prática, glória e perigo andam lado a lado, diante de um
crescente questionamento em torno da democracia e dos valores liberais que ela
representa.
Igualmente grande é o abismo que separa as
democracias plenas daquelas que só são democráticas no nome. No cálculo da
Economist, 43 países terão eleições livres, justas e transparentes. É o caso da
Islândia, considerado o terceiro país mais democrático do mundo. Há também
aqueles com eleições nada livres, como a Venezuela ou a Coreia do Norte (onde o
comparecimento habitual às urnas chega a quase 100%, o que faz os
norte-coreanos acreditarem, segundo uma velha piada local, que no dia da
eleição ninguém morre ou fica doente). E há democracias com eleições falhas,
como no exemplo norte-americano.
Observando tais números, o jornalista
britânico Martin Wolf, principal comentarista econômico do jornal Financial
Times, fez uma reflexão importante que merece ser examinada: a ideia central da
democracia – segundo a qual os governos são responsáveis perante os governados
– ainda é valorizada em grande parte do mundo, razão pela qual mais da metade
da população mundial votará neste ano. O próprio Wolf, no entanto, trata de
relativizar essa fortaleza democrática, apontando o crescente poder das
autocracias e o triunfo do autoritarismo em muitos países. São exemplos o
aumento do poder chinês, o sufocamento da democracia na Rússia de Vladimir
Putin e até mesmo uma possível vitória de um redivivo Donald Trump, após sua
tentativa de reverter na marra o resultado da última eleição presidencial.
O fato é que, como descreve Wolf, o que está
ocorrendo no mundo não é exatamente uma perda de confiança nas eleições em si –
não raro autoritários usam as eleições para consagrar seu poder. Estudiosos
chamam o fenômeno de iliberalismo, um sistema em que as eleições ocorrem,
líderes são eleitos democraticamente, e a democracia é dinamitada “por dentro”.
Nessas democracias iliberais, não necessariamente se instala uma ditadura, mas
se restringem direitos e liberdades básicos de cidadãos, além de instituições independentes
se verem sistematicamente afrontadas. Nessa categoria estariam os EUA da era
Trump, o Brasil de Jair Bolsonaro e a Hungria de Viktor Orbán, além de China,
Rússia, Polônia e vários outros.
Se não há exatamente uma perda de confiança
nas eleições, como lembrou Wolf, está-se diante de um ataque às instituições
liberais, entre as quais os tribunais, as burocracias e a mídia independente. É
o que ele definiu como uma perda de confiança no liberalismo, que parecia
vitorioso após a queda da União Soviética, nos anos 1990. Há uma clara divisão
política e ideológica no mundo, reforçada por líderes populistas e
autoritários, à direita e à esquerda – aqueles que, sob o pretexto de pregar um
mundo multipolar, apostam em cisões sectárias que tentam fazer reviver uma
guerra fria inexistente, e no plano doméstico buscam simplificações ideológicas
e convertem forças oposicionistas em inimigos a eliminar, como se conflitos de
poder fossem um jogo de soma zero.
A democracia liberal, ao contrário, é tão
preciosa porque, entre outras coisas, reconhece como legítimas até mesmo
demandas que ela própria não pode atender. Reconhecer conflitos, valorizar a
busca de soluções negociadas e pactuadas (e não à mercê da vontade de um
“grande líder”), ancorar-se em princípios centrais baseados em direitos e
liberdades individuais e coletivos, reforçar sistemas de pesos e contrapesos,
eis a essência de um liberalismo que pode estar abalado, mas não inteiramente
quebrado – para usar a feliz expressão de Wolf. Apesar das tentações
autoritárias, sociedades assim são historicamente mais bem-sucedidas. Parece
difícil, mas convém defendê-las.
A implicância de Lira com a burocracia
O Estado de S. Paulo
Para o presidente da Câmara, o Orçamento não pode estar à mercê de quem não foi eleito para escolher as prioridades. Mas é a burocracia que dificulta os desmandos de quem foi eleito
O discurso do presidente da Câmara na
abertura do ano legislativo é matéria-prima para especialistas de diferentes
ramos do conhecimento. Os cientistas políticos decerto se interessaram pelos
recados de Arthur Lira ao Poder Executivo quanto ao “respeito aos acordos
firmados e o cumprimento à palavra empenhada”. Aos economistas, deve ter
sobressaído a defesa do papel do Legislativo na elaboração e aprovação do
Orçamento (leia-se: na apropriação de recursos via emendas parlamentares). Já
os juristas provavelmente repararam na implicância de Lira com o que chamou de
“burocracia técnica”.
Sobre esse último ponto, o presidente da Câmara afirmou que o Orçamento não pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo “e muito menos de uma burocracia técnica”. Isso porque essa burocracia “não foi eleita para escolher as prioridades da nação” e “não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”. Por mais relevantes que sejam as informações obtidas e as carências constatadas pelos representantes do povo em suas bases eleitorais, o momento e o tom da intervenção de Lira sugerem que seu problema com a burocracia decorre, sobretudo, do fato de que ela é um óbice à ampliação do livre uso dos recursos orçamentários pelos deputados.
O presidente da Câmara bem sabe que o
aparelho burocrático é uma consequência da expansão das funções do Estado. Essa
expansão é fruto, dentre outros, de disposições e programas previstos no texto
constitucional e do sufrágio universal vigente no País. Quanto mais amplo o
eleitorado, mais diversificadas suas pretensões; daí o aumento das tarefas a
cargo do Estado, que precisa aparelhar-se para cumpri-las.
No entanto, segundo Lira, a “burocracia
técnica” não estaria autorizada a imiscuir-se nas decisões parlamentares sobre
a destinação do Orçamento por lhe faltar tanto legitimidade democrática quanto
conhecimento das necessidades concretas do interior do País.
De fato, o poder do burocrata não é um poder
genuinamente democrático. O aparelho burocrático é uma estrutura hierárquica em
que o poder não provém dos cidadãos, mas é exercido sobre eles. No mais, a
democracia é o governo da opinião, não do saber técnico.
Por outro lado, é inegável que questões
nacionais e mundiais da maior importância dependem de algum conhecimento e
domínio técnico para poderem ser compreendidas e enfrentadas. Isso de forma
alguma exclui a política, mas mostra que uma burocracia treinada e bem
conduzida é indispensável à delimitação, à implementação e ao aperfeiçoamento
de decisões, prioridades e projetos da própria política.
Por isso, o parlamentar que “gasta a sola do
sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros” não necessariamente
realiza a melhor alocação dos recursos orçamentários. Ressalte-se que o
contrário pode ocorrer, considerando-se que, no nosso País, a destinação das
emendas frequentemente decorre da vontade isolada de cada parlamentar
(descoordenação), nem sempre é transparente ou conta com critérios e objetivos
claros. Às vezes, dá em corrupção.
A razão mais profunda do apetite de boa parte
dos congressistas pelas emendas está na ajuda que elas dão para garantir o
lugar deles na legislatura seguinte. Como explicou o economista Roberto Macedo
em artigo neste jornal, “prefeitos e vereadores municipais têm grande
influência nos resultados das eleições estaduais e federais, dada a sua relação
com os eleitores locais, em torno dos quais passam a atuar como cabos
eleitorais”. Aí “entram as emendas, pois os parlamentares procuram destiná-las
às suas bases eleitorais, cativando prefeitos e vereadores em busca de apoio
para reeleição. Garantidas as emendas, os candidatos incumbentes (...) passam a
alardear o seu papel, à cata de votos futuros” (Problema das emendas
parlamentares se agravou, 4/1/24).
Combater esses usos ora desmesurados, ora
desvirtuados do poder político é uma das principais tarefas de uma burocracia
dedicada a estruturar e implementar da maneira mais eficaz os comandos e
objetivos legais. Talvez venha daí a implicância de Lira.
Precatório deveria ser exceção
O Estado de S. Paulo
Estarrece o desconhecimento do governo sobre
as causas do aumento da dívida judicial
Precatório deveria ser exceção. De tão óbvia,
essa recente declaração do secretário executivo do Ministério do Planejamento e
Orçamento, Gustavo Guimarães, torna espantosa a constatação de que só agora
parece que o governo federal resolveu se dedicar a avaliar as causas do
crescimento vertiginoso de ações de contribuintes contra a União ganhas na
Justiça.
Não restam dúvidas de que os indícios apontam
para erros na formulação de políticas públicas, como sugeriu o secretário. Até
porque são o resultado de débitos pulverizados, principalmente envolvendo o
pagamento de benefícios da Previdência Social e passivos trabalhistas. O que
surpreende é que esses erros tenham se repetido, como se estivessem passando
despercebidos.
É estarrecedor, para dizer o mínimo, que foi
necessária uma década de recorrentes aumentos na cifra bilionária dos
precatórios para fazer o governo acordar e decidir investigar os motivos. Em
2014, esses pagamentos correspondiam a 1,9% da despesa primária da União; agora
já equivalem a 3,3%.
Como uma determinação formal e constitucional
da Justiça para que seja paga uma dívida da Fazenda pública, o precatório é a
certificação de que algo de errado ocorreu em determinados procedimentos,
durante a relação entre o ente público e cidadãos ou empresas, com prejuízo
para estes últimos. Por óbvio, casos assim deveriam ser excepcionais, um
deslize, um desvio de rota.
Mas, se fosse assim, precatórios não teriam
recebido o apelido de “meteoro”. O termo, cunhado em 2021 pelo então ministro
da Economia, Paulo Guedes, dá a ideia do impacto que o pagamento desses
débitos, para os quais não cabe mais nenhum recurso, tem nas contas públicas.
Naquele ano, quando foi criada a vergonhosa
PEC do Calote para empurrar a dívida para a frente, o “meteoro” era de R$ 89
bilhões. No ano passado, quando foi aberto crédito extraordinário para
pagamento, seu volume havia passado para R$ 93,1 bilhões.
Não é o que se pode chamar de um montante
desprezível. O interesse anunciado agora em verificar como o “meteoro” foi
formado é, de fato, uma boa notícia. Mas a lentidão como são tratados problemas
tão evidentes impressiona pelo descaso com o dinheiro público. Ao Estadão, o
secretário Guimarães enumerou os diversos órgãos do governo que participarão da
análise dos dados para o mapeamento que vai mostrar se as normas precisam ser
alteradas para evitar tantos prejuízos aos cofres públicos.
Roga-se que, ao final, mudanças de leis ou
normas sejam efetivamente para melhorar processos e não exclusivamente para
reduzir direitos de quem busca o ressarcimento. Precatório não é empréstimo. É
o pagamento de uma dívida judicial que normalmente percorre um longo período
desde o pedido até a decisão em última instância. A incidência de juros sobre o
valor pedido é, portanto, uma correção devida pelas perdas.
Se forem detectadas fraudes, que sejam punidos os fraudadores. Se forem verificados erros de planejamento de políticas públicas, que sejam reformuladas. Mas que não se usem artifícios jurídicos para negar direitos adquiridos.
Pelos bons números do carnaval
Correio Braziliense
No DF, foram pouco mais de 40 ocorrências
policiais sem gravidade. Em Minas Gerais, chamou a atenção a queda de casos de
assédio às muheres
O país pode até parar durante o
carnaval, com as pessoas curtindo a folia nas ruas, mas a economia segue se
movimentando — e muito. Somente as maiores festas de cinco estados brasileiros
– Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco — devem girar
cerca de R$ 25 bilhões, injetados nas economias locais, montante superior ao de
2023.
Apenas na Bahia, a estimativa é de R$ 6,6
bilhões, o que mostra a força e a tradição dos trios elétricos e blocos de rua.
Em São Paulo, são R$ 5,7 bilhões, incluindo o desfile das escolas de samba no
Anhembi. Na sequência, vem Minas Gerais (R$ 5,2 bilhões), à frente do Rio de
Janeiro e seus desfiles na Sapucaí (R$ 4,5 bilhões). Já em Pernambuco a
previsão é de que o carnaval movimente R$ 3 bilhões, segundo levantamento do
site Poder360. Minas Gerais apresenta o maior crescimento de faturamento, com
injeção de R$ 1 bilhão a mais do que no ano passado.
Fato é que a festa tem o poder de turbinar a
alegria e os ganhos. O Distrito Federal terá até amanhã quase 60 agremiações —
para adultos e crianças — em quatro dias de folia. Maceió tomou uma decisão
diferente: preferiu investir no pré-carnaval, ou seja, uma semana antes, para
que nos dias de carnaval recebesse apenas turistas que vão à cidade por suas
belas praias.
Outros números que merecem ser destacados
(pelo menos por enquanto) dizem respeito ao comportamento do folião e à
segurança nos dois primeiros dias da festa. A importunação sexual e o assédio
sofrido durante e ao longo dos blocos de carnaval caíram drasticamente em
Minas. Segundo a Polícia Militar do estado, foram 61,11% menos ocorrências do
que em 2023.
Em São Paulo, a polícia conseguiu resgatar 55
celulares até a noite de sábado e um homem de 19 anos foi detido com 71 cartões
bancários. No Distrito Federal, foram pouco mais de 40 ocorrências até a manhã
de ontem, todas sem gravidade. Campanhas contra o assédio sexual, violência de
gênero, videomonitoramento e o uso de drones e helicópteros têm ajudado
bastante os órgãos que cuidam da segurança nos estados.
Ainda que em menor número, por outro lado, a
imprensa noticiou casos como em Pernambuco que, na sexta-feira à noite, havia
registrado dois casos graves: em Olinda, um sargento do Exército teria reagido
a uma tentativa de assalto, baleando dois suspeitos, e, no Centro de Recife, um
turista teria levado uma facada no peito, também em tentativa de assalto. Em
São Vicente, na Baixada Santista (SP), a Secretaria de Turismo, em
comum acordo com a Secretaria de Segurança Pública, preferiu cancelar o carnaval,
depois que uma onda de violência registrada às vésperas da folia.
Bem ou mal, são números sobre os quais
autoridades e pesquisadores devem se debruçar depois que o país voltar à
normalidade. Que os dados positivos perdurem e multipliquem, para que, no
balanço final, os brasileiros tenham curtido, de modo geral, um carnaval mais
seguro e que reverta receitas para as cidades e seus moradores.
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