quarta-feira, 13 de março de 2024

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - ‘Non ducor, duco’

O Estado de S. Paulo

Sob pretexto de cuidado com o Brasil, podemos estar reféns de mensagens que distorcem nossa percepção sobre a realidade do País

Não raro, vem um sentimento de indignação e de tristeza a respeito dos rumos do País. Chegam-nos notícias sobre mau uso de recursos públicos, decisões contraditórias do Supremo Tribunal Federal (STF) ou atos do governo federal que nos parecem repetição de erros passados. Tudo isso nos abate. Muitas vezes, nem sequer são notícias propriamente ditas, mas mensagens compartilhadas pelo WhatsApp, cuja origem não sabemos ao certo. No entanto, mesmo sendo pouco confiáveis, elas também afetam nosso estado de ânimo. Não só frustrados. Sentimo-nos enganados, feridos em nossa cidadania.

Depois, esse sentimento reflete-se nas conversas familiares, nos ambientes profissionais, nos círculos sociais. De forma espontânea, acabamos falando de assuntos sobre os quais temos objetivamente pouco conhecimento, mas que nos revoltam internamente. Daí surgem discussões, atritos, novas incompreensões, o que alimenta a frustração. O País com o qual sonhamos está distante não apenas nas decisões de Brasília, mas na própria mesa de jantar ou no grupo dos amigos da faculdade.

É um panorama asfixiante, mas não porque tudo esteja indo mal e não exista uma saída possível. A avaliação simplista de terra arrasada não é bom retrato da realidade, que sempre tem matizes e contrastes. É asfixiante principalmente porque nos vemos presos a uma teia de assuntos que, não sendo necessariamente os mais importantes, fisgam nossa cabeça – e nossa língua.

O modo de consumo da informação nos dias de hoje causa uma fragilidade. Sob o bombardeio seletivo de mensagens e vídeos que nos chegam pelas redes sociais ou pelo WhatsApp, é muito fácil perder a visão de conjunto ou avaliar mal a relevância de cada tema. E pior: este emaranhado de informações – quase sempre sem acurácia e sem contexto – molda nossas preocupações. É um fenômeno paradoxal: em vez de nos fortalecerem, as novas tecnologias deixam-nos muitas vezes mais expostos ao erro, mais reativos, menos autônomos.

Non ducor, duco (não sou conduzido, conduzo) diz o lema latino inscrito no brasão da cidade de São Paulo. Não sejamos conduzidos pelo que chega até nós. Não deixemos que outros determinem quais serão as nossas preocupações, ou sobre quais assuntos versarão nossas conversas. Trata-se de um aspecto essencial da autonomia no mundo contemporâneo: as preocupações de cada um devem decorrer das suas prioridades, e não do que lhe chega pelo WhatsApp.

Recomenda-se atenção. Sob pretexto de cuidado com o Brasil e com o interesse público, podemos estar reféns de mensagens que, valendo-se de dados verdadeiros, mas incompletos, distorcem nossa percepção sobre a realidade social, política e econômica do País. Esta é a velha estrutura dos sofismas: verdade aparente, erro oculto.

Certamente, muitas notícias geram indignação, e podemos e devemos falar sobre elas. Mas, se elas se tornam o carro-chefe das nossas conversas, isso significa que deixamos de conduzir o que nos preocupa e inquieta. Nossa agenda mental está sendo determinada por outros. Non ducor, duco.

Existe ainda outro problema. Nossa preocupação com o coletivo é rasteira e de curto prazo – superficial –, se estiver guiada pelos trending topics do momento. O debate público está repleto de falsas questões, lugares-comuns, indignações artificiais e problemas inventados (ou distorcidos) por interesses políticos.

Autonomia é falar dos nossos sonhos, do que queremos deixar de legado para as futuras gerações. Quais são nossas prioridades para o País, para nossa cidade, para nossa área de atividade profissional? É isso o que deve guiar as nossas conversas, e não o vídeo com trechos recortados de uma sessão do STF de cinco anos atrás.

Exercer o protagonismo sobre a nossa agenda mental é mais do que mero voluntarismo. Exige estudo, diálogo, reflexão. Conhecemos a fundo os três ou os cinco temas que nos parecem vitais para a sociedade e para o Estado brasileiro? Sabemos elaborar um diagnóstico de cada um deles, indicando o que avançou nos últimos anos, o que foi feito e o que não se fez? Somos capazes de formular um prognóstico realista, com medidas factíveis para o curto, o médio e o longo prazos?

Temos pouco a contribuir falando de assuntos que não dominamos – sobre os quais temos um conhecimento superficial e seletivo –, simplesmente porque estamos indignados com eles. É uma bela forma de ser conduzido, de ser manada. Ao contrário, temos muito a contribuir se, a partir da nossa experiência profissional e da nossa área de conhecimento, procuramos olhar para os problemas concretos do Brasil, pensando e construindo coletivamente alternativas e soluções.

Há muito a fazer pela coletividade. Não podemos desperdiçar nossas energias e talentos com questões sobre as quais temos pouquíssimo controle e cujo debate produz apenas irritação e desânimo. A preocupação com o futuro do País não é atividade estéril. A depender de como se trilha, pode gerar muitos frutos. Mas, para isso, é preciso não se deixar dominar no núcleo mais íntimo da autonomia: em nossa cabeça, em nosso mundo interior.

*Advogado

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente, texto muito bem pensado. Repito um pedaço que julgo sintetizar o artigo: "as preocupações de cada um devem decorrer das suas prioridades"!