Folha de S. Paulo
Por várias razões, é do interesse de Tel Aviv
uma solução para a guerra em Gaza que contemple um Estado palestino
Uma das minhas regras inflexíveis do
jornalismo é a seguinte. Quando você vir um elefante voando, não ria, não
duvide, não zombe —tome notas. Algo muito novo e importante está acontecendo e
é preciso entendê-lo.
Na semana passada, vi um elefante voar: o
líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, apoiador de Israel de
longa data, fez
um discurso pedindo aos israelenses que realizassem uma eleição o mais rápido
possível para derrubar o primeiro-ministro, Binyamin
Netanyahu, e seu gabinete de ultradireita.
Foi um grande elefante voando. E isso gerou
respostas previsíveis da direita judaica ("Schumer é um traidor"), de
Netanyahu ("Israel não é uma república das bananas") e de cínicos
("Schumer está apenas se aproximando da esquerda democrata"). Todas
respostas previsíveis e todas, erradas.
A resposta correta é, na verdade, uma pergunta: o que de tão errado pode ter acontecido na relação entre Estados Unidos e Netanyahu a levar alguém tão dedicado a Israel quanto Chuck Schumer a pedir à população do país que substitua o premiê —e ter sua fala elogiada pelo presidente Joe Biden como um "bom discurso" que delinearia preocupações compartilhadas por "muitos americanos"?
Israelenses e aliados do Estado judeu ignoram
essa pergunta básica a seu próprio risco.
A resposta tem a ver com uma mudança profunda
na política e geopolítica dos EUA quando se trata do Oriente Médio,
exposta pela guerra entre Israel e Hamas. Esta
tornou a postura de Netanyahu de recusar completamente qualquer solução para as
relações de seu país com os palestinos que incluam a criação de um Estado para
eles uma ameaça tanto aos objetivos de política externa de Biden quanto às suas
chances de reeleição.
Antes de explicar o porquê, quero reforçar
algo que Schumer e Biden também apontaram: Israel foi obrigado a iniciar a
guerra na Faixa de Gaza em
razão de um ataque cruel do Hamas às comunidades na fronteira com Gaza,
habitadas justamente pelos israelenses mais pacíficos no espectro político do
país.
Se alguém pede um "cessar-fogo já"
em Gaza e não um "cessar-fogo e libertação de reféns já", está
agravando o problema. Porque apenas alimenta o temor dos israelenses de que o
mundo está contra eles, não importa o que façam.
Aqueles que
protestam contra a guerra em Gaza e as muitas vítimas civis que ela
gera também têm a responsabilidade de denunciar o Hamas —como Schumer fez. É
uma organização assassina que trouxe morte, destruição e desespero para o povo
da faixa palestina e que desde os anos 1980 luta tanto para destruir a
possibilidade de uma solução de dois Estados quanto qualquer ator na região.
Voltando ao argumento: por
que Netanyahu se tornou um problema tão grande para os EUA e Biden geopolítica
e politicamente?
A resposta curta é que toda a estratégia dos
EUA para o Oriente Médio no momento —e, eu argumentaria, os interesses de longo
prazo de Israel— depende de Tel Aviv se
associar com a Autoridade Palestina (não-Hamas,
baseada em Ramallah, na Cisjordânia), das necessidades de desenvolvimento a
longo prazo dos palestinos e, em última instância, de uma solução de dois
Estados. E Netanyahu expressamente descartou isso, juntamente com qualquer
outro plano para Gaza no dia seguinte à guerra.
Por que Israel e os EUA precisam de um
parceiro palestino e de uma visão para uma solução de dois Estados? Vejo ao
menos seis razões. São muitas, mas todas impactariam os desafios e o destino
político de Biden.
1) Nenhum Exército jamais teve que lutar
contra um inimigo em um ambiente urbano tão denso que inclui uma estimativa de
560 km a 720 km de túneis subterrâneos se estendendo de uma ponta da zona de
guerra à outra. Como resultado, uma guerra urbana do tipo sempre causaria
muitas mortes de civis inocentes, mesmo com um Exército mais cuidadoso —mas
ainda mais com um enfurecido pelo assassinato e sequestro de tantos filhos,
pais e avós.
Para os civis de Gaza que sobrevivem, tenho
certeza de que nada poderia compensar a perda de seus familiares. Mas uma
disposição expressa de Israel em forjar uma nova relação entre o seu Estado e
os palestinos em Gaza e na Cisjordânia liderados não pelo Hamas ao menos daria
alguma esperança a todas as partes de que nunca haveria outro episódio de
derramamento de sangue como esse novamente.
2) Esta é a primeira
grande guerra entre Israel e o Hamas travada na era do TikTok. E ele foi
projetado para uma guerra como essa —vídeos de 15 segundos mostrando o pior do
sofrimento humano, transmitido 24 horas por dia. Diante desse tsunami
midiático, Israel precisava de uma mensagem clara de compromisso com um
processo de paz pós-guerra, rumo a solução de dois Estados. Mas ele não tem
nada.
Como resultado, Tel Aviv não está apenas
afastando muitos árabes-americanos e muçulmanos em geral, dizem autoridades do
governo Biden, mas também corre o risco de perder o apoio de toda uma geração
de jovens pelo mundo (incluindo parte da base do Partido Democrata).
3) Esta não é uma guerra de
"retaliação", como todas as disputas anteriores entre Hamas e Israel
—nas quais Tel Aviv punia o grupo palestino por lançar foguetes contra o país,
mas depois o deixava no poder quando os combates terminavam. Esta guerra, ao
contrário, tem como objetivo destruir o Hamas de uma vez por todas. Portanto,
desde o início, Israel precisava ter uma concepção alternativa de como Gaza
poderia e deveria ser legitimamente governada por palestinos não ligados ao
Hamas —e nenhum palestino vai se candidatar a esse cargo sem pelo menos um
processo legítimo relacionado à criação do Estado da Palestina.
4) O ataque do Hamas foi projetado para
impedir Israel de se tornar mais integrado do que nunca ao mundo árabe, graças
aos Acordos de Abraão e ao processo de normalização em curso com a
Arábia Saudita. Consequentemente, a resposta de Israel teve que ser projetada
para preservar essas novas e vitais relações. Isso só seria possível se Israel
estivesse combatendo o Hamas em Gaza com uma mão e buscando ativamente dois
Estados com a outra.
5) Esta guerra teve um importante componente
regional. Israel se viu rapidamente lutando contra o Hamas em Gaza e contra
aliados do Irã no Líbano, Iêmen, Síria e Iraque. A única maneira de Israel
construir uma aliança regional e permitir que Biden ajude a alinhar aliados
regionais era se estivesse simultaneamente buscando um processo de paz com
palestinos não ligados ao Hamas.
Esse é o cimento necessário para uma aliança
regional contra o Irã. Sem isso, a grande estratégia de Biden de construir uma
frente contra o Irã e a Rússia (e a China) que se estende da Índia através da
Península Arábica até o Norte da África e até a União Europeia/Otan será
frustrada. Ninguém quer se comprometer a proteger uma Israel cujo governo é
dominado por extremistas que desejam ocupar permanentemente tanto a Cisjordânia
quanto Gaza.
6) O cientista político Gautam Mukunda, autor
do livro "Picking Presidents" (escolhendo presidentes), apontou este
último e relevante argumento: "o surgimento da esquerda progressista e a
aliança tácita de Netanyahu com Trump enfraqueceram o apoio a Israel entre os
democratas".
"Se Tel Aviv travar uma guerra em Gaza
que gere muitos civis mortos, mas não oferecer nenhuma esperança política de um
futuro melhor para israelenses e palestinos, com o tempo isso obscurecerá a
memória das horrores de 7 de outubro e o apoio a Israel em seu rastro. Isso
torna cada vez mais difícil até mesmo para figuras mais pró-Israel americanas
—como Schumer— continuarem a apoiar a guerra diante dos enormes custos
internacionais e nacionais dessa postura."
Por todas essas razões, e não há como dizer
isso de forma mais clara, Israel deveria ter um grande interesse em buscar no
horizonte a solução de dois Estados. Não sei se a Autoridade Palestina pode se
organizar para ser o governo que palestinos e israelenses precisam que ela
seja; só sei que todos agora deveriam ter um grande interesse em tentar
fazê-lo.
*Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades
Um comentário:
Muito bom!
Depois de mais de 32 mil palestinos mortos, a grande maioria crianças, mulheres e idosos, o Conselho de Segurança da ONU aprovou hoje, quase unanimemente, cessar fogo imediato no conflito na Faixa de Gaza, mas o governo sanguinário de Netanyahu já afirmou que não vai aceitar. Pretende continuar sua política GENOCIDA e expulsar os palestinos sobreviventes, para expandir ainda mais o Estado criminoso e colonialista de Israel, através dos CRIMES DE GUERRA que comete desde o início da vingança israelense.
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