Folha de S. Paulo
Atrás de PL antiaborto está estratégia
baseada na ideia de que governo deve administrar as mentes
"É a economia, estúpido!". O slogan, criado pelo marqueteiro James Carville, que orientou a campanha presidencial vitoriosa de Bill Clinton, em 1992, ficou célebre, mas era política convencional: o governo deve administrar as coisas. Há, porém, um outro tipo de ação política que desafia a tradição democrática. O PL antiaborto não é (só) sobre aborto nem (apenas) um problema das mulheres. Avulta, atrás dele, uma estratégia política baseada na ideia de que o governo deve administrar as mentes.
O mundo moderno nasceu com a separação entre
política e religião: Estado laico. Geralmente, com razão, aponta-se o
fundamentalismo islâmico como a mais notável reação à modernidade. Arábia
Saudita, Irã, Taleban —os Estados teocráticos formam uma nítida antítese à
laicidade das democracias ocidentais. Neles, a religião figura como fonte de
poder indiscutível e controle social absoluto. A estratégia política do
fundamentalismo cristão inveja as prerrogativas dessas teocracias.
Príncipes sauditas bebem sem parar durante
suas estadias nababescas na Europa. Os políticos que pregam a moral bíblica não
ligam a mínima para os mandamentos: religião, para eles, é uma escada que
conduz ao palácio. O PL antiaborto não é sobre fetos, mas uma aplicação
circunstancial de seu slogan eleitoral: "É a moral, estúpido!". O
herói principal dessa turma não é Trump ou, muito menos, Milei. Chama-se Nayib
Bukele, o tiranete salvadorenho que roubou a cena na mais recente Conferência
de Ação Política Conservadora, fórum da direita global realizado em Maryland,
nos Estados Unidos, em fevereiro.
Bukele emergiu na política pela esquerda, no
berço do partido FMLN, migrando mais tarde para a direita, pela qual elegeu-se
presidente em 2019 e, violando a Constituição, reelegeu-se meses atrás. Há três
anos, destruiu a independência do Judiciário, destituindo todos os seus juízes,
o que lhe valeu um elogio ganancioso de Eduardo Bolsonaro. Os pilares paralelos
de seu poder são a manipulação midiática das redes sociais e uma estreita
aliança com vetores evangélicos fundamentalistas sediados nos EUA.
Os pastores Franklin Cerrato, da diáspora
salvadorenha nos EUA, e Mario Bramnick, conselheiro de Trump, traçaram os
contornos da aliança. Bukele atribuiu ao Espírito Santo a profecia de que
governaria El Salvador, convidou o pastor midiático argentino Dante Gebel, da
River Church de Anaheim (Califórnia) para orar na sua posse e comprometeu-se a
criar uma Secretaria de Valores devotada à educação moral do país. No final de
2019, uma deputada do círculo presidencial apresentou moção que decretava a
leitura compulsória da Bíblia nas escolas. Governar as mentes –eis o segredo da
ditadura salvadorenha.
Bramnick celebrou o triunfo de Bukele de 2019
numa conferência evangélica por meio de uma referência à profecia bíblica das
70 semanas: "O tempo do cativeiro terminou. O Senhor está levantando Ciros
não só nos EUA, mas na América Latina. Bolsonaro é um Ciro. Seu presidente
Bukele é um Ciro. Deus está sobre ele".
O Ciro salvadorenho desfechou o autogolpe em
fevereiro de 2020, dia da invasão militar da Assembleia Legislativa, quando
sentou-se na cadeira da presidência do parlamento e, mãos sobre o rosto, pôs-se
a rezar. Depois, no ápice da pandemia, decretou o Dia Nacional de Oração
"para pedir a Deus que nos livre desta enfermidade".
As redes sociais, os pastores e as orações
ajudaram, mas a reeleição de Bukele, com 85% dos votos, refletiu a popularidade
de sua "guerra às gangues" que converteu El Salvador num Estado
militar-policial em perene "estado de exceção". A mega-prisão de
Tecoluca, uma das maiores do mundo, com capacidade para 40 mil prisioneiros,
retrata melhor seu regime que qualquer imagem bíblica. O PL antiaborto é só uma
pedra inaugural no edifício político distópico imaginado pelos nossos fundamentalistas.
5 comentários:
" Os políticos que pregam a moral bíblica não ligam a mínima para os mandamentos: religião, para eles, é uma escada que conduz ao palácio. "
Perfeito!
😏😏😏
Diante dessa polêmica que o STF causou ao contrariar a lei que dava o limite de 22 semanas para se fazer o aborto a partir do estupro Gerou toda essa polêmica a CB órgão máximo da igreja católica brasileira diante disso se posicionou em carta aberta a população em que manifesto o apoio total contra o aborto que está tramitando na Câmara federal com o Lema :
“A mãe e a criança devem viver e terem vida em abundância “
CNBB
A resposta está dada na coluna do Josias de Souza, " Datafolha mostra aos religiosos antiaborto legal que Deus existe ", no UOL: segundo pesquisa Datafolha, 7 em cada 10 católicos rejeitam projeto que equipara mulheres que cometem aborto a estupradores. A CNBB pode ser a cúpula que for, mas ela não substitui parcela mais que considerável da sociedade. Nem a CNBB, quanto mais pastores alucinados ou picaretas. Enfim.
Muito bom o artigo.
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