O Globo
Jesus não tem escapado ao escrutínio da
investigação histórica
Numa tarde qualquer, um padre entra secundado
por alguns policiais na casa de uma família judia e leva o filho de 6 anos. O
garoto será educado pela Igreja. O pai não poderá sequer reclamar ao Papa,
porque é ele quem ordena o rapto. A lei permite: não católicos não podem criar
crianças na religião. “O sequestro do Papa”, obra-prima do italiano Marco
Bellocchio, 84 anos, conta a história verídica
de Edgardo Mortara na Bolonha do século XIX. Filho de judeus, foi batizado às
escondidas por uma empregada.
Não se sequestram mais crianças para serem educadas pela Igreja (até o momento em que escrevo). Também o Papa não possui o mesmo poder absolutista. Por ceder um anel ou outro, Papa Francisco é chamado de comunista pela extrema direita. O secularismo avançou com a ciência — a expectativa de vida quase dobrou desde o rapto de Edgardo, em 1857. Nada disso parece importar.
Tipicamente humano, o avanço do conhecimento
com os desafios aos dogmas bíblicos produz um reavivamento das religiões, num
aguçamento de vai e volta de crenças. Já se manipulam os genes, até com a
prevenção a futuras doenças, embora ainda permaneça uma religiosidade apoiada
em superstições brotadas no sol do deserto oriental.
O Papa não abduz mais as crianças de famílias
judias, assim como a excomunhão perdeu seu valor de face; não se queimam mais
os ímpios nas fogueiras das praças e o índex de livros proibidos não incomoda
os fiéis, pelo contrário, cada vez mais surge uma literatura especializada em
destronar Deus (só com H: Harari, Hitchens… etc.) e ironizar os preceitos e as
fantasias bíblicas (a virgindade de Maria ou a ressurreição como exemplos).
Também Jesus não tem escapado ao escrutínio
da investigação histórica. Ao longo dos séculos sua epopeia foi reconstruída,
com episódios cortados ou rearrumados para deixá-lo mais adequado na fita.
“Heresy” (ainda inédito por aqui), da historiadora e jornalista inglesa
Catherine Nixey, apoia-se em diversos relatos (tal a Bíblia) e livros banidos
pela religião oficial. O avanço católico, depois de se tornar o credo de Roma no século IV,
tratou de derrubar os templos pagãos e desaparecer com narrativas menos cristãs
(heréticas, como diziam) de alguns de seus ícones. Mas sempre sobram
testemunhas. (Você está enganado se acha que apenas os relógios Rolex unem
Bolsonaro a Lula.)
Na nova obra de Nixey, cujo subtítulo é
“Jesus e os outros filhos de Deus”, surgem vários episódios da vida de Cristo
capazes de desorientar os pios das redes sociais. Mesmo sendo divino, escapou
de ser uma flor de correção. Nixey elenca algumas versões sobre a vida de
Cristo, entre as quais teria assassinado adversários e rejeitado os pais.
Comenta-se ainda sobre a existência de um irmão gêmeo e de seu comportamento
assaz errático com seus semelhantes — essa história de reaparecer só na Quarta
de Cinzas, sei não. Como se vê, a vida não é fácil para ninguém. Não me assusto
porque, afinal, ele teria vindo à Terra para ser um igual dos homens —
portanto, capaz de cometer seus (digamos) deslizes. Ninguém é perfeito, diria
Billy Wilder pela boca de Jack Lemmon.
Mas em nossa época digital cada um possui a
sua opinião e os seus fatos. Quase todos os republicanos acreditam que Trump
venceu a eleição em 2020. Outros duvidam da chegada do homem à Lua. Apesar de
Nietzsche, ainda no século XIX, haver declarado que a humanidade matou Deus, os
novos adventos tecnológicos não parecem arrefecer o desejo pela religiosidade.
Pelo contrário.
Em nome da fé não se sequestram mais garotos
porque os religiosos contemporâneos exercem seu poder por outros meios. Está
tudo dominado, tudo terceirizado. Cada vez mais se dá pela lei dos homens; a
partir do Estado dito laico que as mordaças são tecidas. Crenças são vertidas
em legislação, sob o risco de aprisionamento. A laicidade é um sonho de verão —
haja vista a tolerância com os jogadores de futebol agradecendo
seus gols a alguma entidade divina ou o descaso com a perseguição aos rituais
afrodescendentes.
Embora fosse útil, não é mais a economia que
pauta a política — é a religião.“Deus acima de tudo” e “Deus, pátria, família”
estão estampados nos discursos da extrema direita. Não adiantam os fatos — como
a derrocada de Roma com a adoção do catolicismo ou o início da Revolução
Industrial sem a mão pesada da igreja apostólica. Isso é História, e lá não
existem milagres, só reprises: a fé dos outros que nos condenam ao atraso
aumenta quando a humanidade anda mais rápido. É quando deixam de contar os
dízimos e fazem leis.
2 comentários:
Interessante o texto! Acho que os "emissários divinos" nunca deixaram de contar os dízimos... Só se perdem às vezes nas contas porque é tanta grana pra contar e esconder.
Verdade.
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