O Globo
O clamor por qualidade de vida inundou as redes sociais, tomou o debate público, alcançou Congresso Nacional, empresariado, Palácio do Planalto. Por trás da insatisfação com a escala que impõe a empregados seis dias de trabalho, um de folga, está o bem-viver, sinônimo de mais tempo para família, estudo, formação profissional, lazer, saúde, consumo. Um século atrás, quem anunciou isso aos quatro ventos, com outras palavras, foi Henry Ford, pioneiro da indústria automobilística dos Estados Unidos. Ele fundou a Ford Motor Company; foi o primeiro a aplicar a montagem em série para produzir carros maciçamente; dobrou para US$ 5 diários o salário mínimo dos operários; e, em 1926, implementou a escala de cinco dias de trabalho, dois de folga, 40 horas semanais de jornada. Fez tudo isso em prol do capitalismo.
— As pessoas consomem mais no tempo de lazer
que no tempo de trabalho. O que conduzirá a mais trabalho. E isso a mais
lucros. E isso a mais salários. O resultado de mais tempo de lazer será
exatamente o contrário do que a maior parte das pessoas crê que seria — apostou
Ford, segundo o economista Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea),
em resenha para a Quatro cinco um.
Hecksher escreveu sobre “Sexta-feira é o novo
sábado: Como uma semana de trabalho de quatro dias poderá salvar a economia”,
livro do português Pedro Gomes, doutor pela London School of Economics e
professor na Birkbeck University of London.
No Brasil, a ganância toma o lugar da
racionalidade toda vez que direitos trabalhistas estão em jogo. O momento nunca
é apropriado. A abolição representaria risco para oligarquia rural assentada na
escravidão. O décimo terceiro seria desastroso para o país. É por causa da
licença-maternidade que mulheres ganham menos. Estender a CLT às empregadas
domésticas inviabiliza financeiramente as famílias. Não por acaso, quase uma
década depois da promulgação da PEC das Domésticas, menos de um quarto da
categoria — 5,896 milhões de pessoas, ao todo, segundo o IBGE — tem carteira
assinada. Somente em julho e agosto deste ano, a maior operação de combate à
escravidão contemporânea já feita no país — realizada em conjunto por
Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público
Federal, Polícia
Federal, Polícia
Rodoviária Federal e Defensoria Pública da União — libertou 593
trabalhadores em dez unidades da Federação, incluindo SP, MG, PE e DF.
A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro
estimou em R$ 115,9 bilhões o custo para o setor no país se for instituída a
jornada de semanal de 36 horas, com quatro dias de trabalho, três de folga,
como estabelece a deputada Erika Hilton (PSOL-SP)
em Proposta de Emenda Constitucional que contou com assinatura de mais de 200
parlamentares, depois do barulho contra a escala 6x1 nas redes sociais. O
movimento Vida Além do Trabalho (VAT) nasceu do desabafo em vídeo de um
exaurido jovem negro, balconista de farmácia, numa rede social. A solidariedade
deu num grupo de mensagens, numa petição por redução da jornada com quase 2,5
milhões de assinaturas e na eleição do autor, Rick Azevedo, como vereador pelo
PSOL para a Câmara do Rio.
Não faltaram tentativas de interdição, não só
à proposta, mas ao debate. As tentativas (vãs) de interdição das discussões
partiram de representantes do empresariado, de parlamentares liberais e até do
ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que defendeu em nota negociação coletiva
entre patrões e sindicatos. Há dúvida razoável sobre a PEC ser o melhor
caminho. Marcos Hecksher acredita que uma alteração no limiar de pagamento de
horas extras — em vez de 44, 40 ou 36 horas — pode funcionar:
— Concordo que reduzir jornada é um caminho
para o Brasil, onde a carga é superior à de países desenvolvidos, dos quais
queremos nos aproximar. Se a melhor maneira de fazer isso é baixando o teto
legal de horas e dias por semana, não estou tão certo. Mas a discussão é
necessária.
A jornada extenuante, que se soma aos longos
períodos de deslocamento até o trabalho, está entre as principais queixas da
mão de obra nacional, especialmente nos setores de comércio e serviços. Afeta a
produtividade, a saúde física e mental; rouba tempo da vida pessoal; limita
lazer e consumo. E ajuda a minar o interesse no emprego com carteira assinada.
Nas estatísticas do Tribunal Superior do Trabalho (TST),
cobrança de horas extras foi a sétima principal reivindicação: 347.281
processos de janeiro a setembro. Em décimo estão queixas sobre intervalo
intrajornada (247.616), período para repouso ou alimentação em ofício contínuo
a partir de quatro horas (15 minutos) ou seis (uma hora); em 12º, duração do
trabalho (238.200); adicional de horas extras (220.858). Somado, o total de
processos ultrapassa 1,053 milhão, quase a soma das três principais demandas:
verbas rescisórias (432.347), adicional de insalubridade (427.023) e multa de
40% do FGTS (406.346).
No livro em que defende a semana de quatro
dias, o economista Pedro Gomes, segundo Hecksher, afirma que os ganhos
acumulados de produtividade no mundo tornam possíveis três dias de folga. Além
disso, jornadas menores tendem a elevar a produtividade — vimos isso com o
trabalho remoto na pandemia. A demanda maior por lazer e entretenimento
estimularia a economia — portanto, geraria empregos. O desemprego tecnológico
pode diminuir; os salários, subir; a desigualdade, cair. Dá para esperar também
melhora das condições de saúde; redução dos casos da síndrome de burnout,
reconhecida como doença laboral; e divisão mais equilibrada nas famílias de
afazeres domésticos e cuidados com pessoas. Governo, parlamentares e
empresários podem acordar incentivos a empresas que concordem em reduzir
jornada e aumentar contratação. A conta do potencial prejuízo está pronta;
falta estimar os ganhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário