sábado, 3 de outubro de 2009

Um humanista na política

Miguel Reale Júnior
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


No momento em que nossa vida política sente a ausência de diretrizes éticas, prevalecendo a busca do poder para a satisfação efêmera da ambição pessoal, vindo a instaurar-se o desmando na apropriação do Estado pelos apaniguados, é bom relembrar a figura de um estadista movido por ideias-força bem claras e sérias, no ano em que se completam dez anos de sua morte.

Franco Montoro integrou a Juventude Universitária Católica (JUC) e depois, no seu percurso de vereador a deputado federal, compôs os quadros do Partido Democrata-Cristão (PDC), do qual era presidente, quando de sua extinção pelo Ato Institucional nº 2. Trouxe, então, para o exercício da política a convicção de que ideologia não se improvisa ao sabor das circunstâncias. Formou seu pensamento na convicção de se dever reconhecer a dignidade de cada cidadão dando-lhe meios de vir a ser sujeito de seu próprio desenvolvimento, tendo-se por fim último a proposta de um conjunto de ações em prol do bem comum.

Para tanto não se contentava com as fórmulas tão somente formais da democracia para integrar o homem comum ao processo decisório, o que exigia a abertura de novos caminhos no exercício da política, não limitado à simples representação popular pelo voto, para se concretizar pela "participação organizada e ativa da população nos assuntos de seu interesse". Cumpria, a seu ver, incentivar a participação, que promove autonomia, e não o mero assistencialismo, que só cria passividade.

A participação tem benefícios de variada ordem: de um lado, leva ao centro de decisão a visão concreta dos problemas da administração e da vida comunitária e, de outro, é um valioso instrumento de promoção e desenvolvimento da pessoa, que se sente partícipe do processo de formulação de políticas e de soluções. Para Montoro, essa participação pode dar-se em diversos planos, como, por exemplo, nas associações de moradores e nos clubes de mães, nos conselhos da escola, nos conselhos comunitários de segurança pública, nas associações de defesa do meio ambiente, em associações de consumidores, em conselhos comunitários para indicação de prioridades orçamentárias, entidades na quais prevalece o diálogo, e não o individualismo ou o paternalismo.

Assim, na visão de Montoro, o exercício da cidadania consiste em ser agente, e não simples espectador do processo decisório, para ter em suas próprias mãos a história que ajuda a escrever, pois respeito à dignidade humana e desenvolvimento apenas são alcançados com "a participação consciente e responsável das pessoas e grupos da comunidade". A participação em obra coletiva, que se sente própria, leva ao entusiasmo e anima a consecução da ação, mediante o espírito de cooperação no seio da comunidade.

Esta era outra ideia-força de Montoro: a prevalência da comunidade. Contra o individualismo acendrado e contra o estatismo, Montoro pregava o comunitarismo, com a desconcentração das atividades e das decisões, por via do qual se estatuía que "o que puder ser debatido com os representantes da comunidade não deverá ser resolvido nos gabinetes fechados". Ao se privilegiar a participação e a comunidade, tem-se por consequência obrigatória a descentralização das decisões e das atividades administrativas, pois, segundo Montoro, "tudo o que puder ser decidido e realizado pelo bairro, pelo município, pela região não deverá ser absorvido pela administração superior".

Assim, desenham-se as três ideias-força do pensamento de Montoro: participação, comunidade, descentralização. Em síntese, a população, que melhor conhece seus problemas e soluções, deve participar dos órgãos comunitários a serem ouvidos pela administração no diagnóstico da situação e na escolha dos caminhos a serem trilhados, pois a forma descentralizada de governar apresenta a solução mais adequada, mais transparente e mais barata. Dizia Montoro que "descentralizar é colocar o governo mais perto do povo e, por isso, torná-lo mais participativo, mais eficiente, mais democrático". Fazia da democracia uma tarefa de todos.

Montoro transformou em realidade a sua pregação. Bastaria lembrar as realizações no campo da educação: a merenda escolar passou a ser municipalizada, com os recursos transferidos para as prefeituras. De início houve a adesão de 118 municípios e em 1985, no final do governo de São Paulo, a totalidade dos municípios estava no programa, que consistia em ter na cidade um Conselho Municipal da Merenda Escolar com representantes da prefeitura, da Câmara Municipal, da Secretaria da Educação, da Associação e Pais e Mestres e de produtores e fornecedores locais.


O resultado foi espantoso: comida adequada ao paladar das crianças, com maior variedade, utilizando produtos da região, com economia de transporte e embalagem e com geração de empregos na preparação e distribuição de alimentos no local. Ao lado disso, foram criadas 5 mil hortas escolares. Os alimentos, não mais industrializados, passaram a ser fornecidos in natura, com menor custo e melhor qualidade. Nas mais diversas áreas implantaram-se a descentralização e a participação: habitação, segurança e saúde, por exemplo.

Além dos manifestos benefícios decorrentes da participação e da descentralização, esta forma de governar impediu o fisiologismo arraigado em nossa prática política, consistente no clientelismo, que prefere o amigo ao mais competente, tratando a coisa pública como se privada fosse, para fazer da política apenas "uma oportunidade de negócios e vantagens pessoais" ou a "exaltação do poder pessoal", messiânico.

Em vez da esperteza, que se transformou em valor positivo na política brasileira hodierna, Montoro pregava o humanismo político fundado na solidariedade e na seriedade, em vista do bem comum.

Estadista humanista como Montoro deixa saudades.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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