É perigosa para a democracia essa tese de que não se pode falar de Lula. Qualquer coisa que se diga dele vira uma tentativa golpista de desmoralizar o metalúrgico que chegou ao poder e ajudou seu povo. As acusações do operador do mensalão Marcos Valério ao Ministério Público, incriminando o então presidente nas negociatas do mensalão, são gravíssimas e podem gerar uma investigação, desde que o denunciante tenha dado um mínimo de substância às suas declarações. Os procuradores são pessoas experientes que sabem lidar com esse tipo de caso e têm condições de avaliar a consistência das acusações.
O que não é possível é partir do pressuposto de que Lula é inatingível e está blindado para sempre porque, segundo o presidente do Senado José Sarney, "é um patrimônio do país, da história do país, por sua vida e tudo que ele tem feito". Aliás, o comentário é quase idêntico ao que o então presidente Lula fez para defender Sarney de críticas e acusações: "Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum."
Por esse raciocínio de índole corporativista, temos no país uma casta de "intocáveis" que, ao contrário da Índia, são seres puros acima de qualquer suspeita. A presidente Dilma é uma dessas que consideram "lamentável" o que seria uma tentativa de "destituí-lo da imensa carga de respeito que o povo brasileiro lhe tem". O presidente francês François Hollande, apanhado no meio da tempestade enquanto recepcionava Lula e Dilma, disse que Lula "é uma referência" pelo que fez no governo pela redução da desigualdade no Brasil.
Nada disso está em discussão no momento, nem a popularidade de Lula nem o que tenha feito de bom para os desassistidos brasileiros. O que se precisa saber é o que Lula tem a dizer sobre as acusações, e seus apoiadores deveriam ser os primeiros a quererem que suas explicações sejam claras o suficiente para desmentir o acusador que, evidentemente, tem todas as razões do mundo para querer tumultuar o processo do mensalão que já o condenou a mais de 40 anos.
O fato de Valério ter levado sete anos para acusar Lula, após desmentir seu envolvimento, conta contra ele. Há, no entanto, detalhes no seu depoimento que lhe dão credibilidade, como o valor do depósito da empresa SMP&B na conta do assessor do Palácio do Planalto Freud Godoy, que já havia sido detectado na CPI dos Correios.
Valério diz que esse dinheiro foi depositado para "gastos pessoais" de Lula, e não se sabe se pode provar tal afirmação. Mas Freud, que foi um dos aloprados que compraram um dossiê na eleição de 2006 para tentar inculpar os candidatos tucanos à Presidência Geraldo Alckmin e ao governo de São Paulo José Serra, tem que explicar por que esse dinheiro foi depositado por Valério em sua conta.
O envolvimento do banco BMG com os empréstimos do mensalão e também seu suposto favorecimento nos empréstimos consignados estão sendo investigados em outro processo, do qual Lula já se livrou por questões de má técnica utilizada na denúncia. Só uma investigação do Ministério Público poderá esclarecer toda a trama, e Lula deveria ser o primeiro a querer ver tudo em pratos limpos.
Ele saiu de sua mudez ontem para dizer que as declarações de Marcos Valério são mentirosas, o que já é um primeiro passo. Mas como Lula já disse, no início do escândalo do mensalão, que fora "traído" por pessoas que tiveram práticas "inaceitáveis" e depois mudou o discurso, afirmando que tudo não passou de "farsa", uma tentativa de golpe para derrubá-lo do governo, é preciso mais para que não pairem dúvidas.
O que de pior pode acontecer no Brasil é se criar um ambiente em que um líder político seja inimputável simplesmente porque, para alguns - mesmo que formem a maioria momentânea - ele seja considerado "um deus", como já foi definido por um de seus áulicos. Não é aceitável que Napoleão, o líder dos porcos revolucionários na obra de George Orwell "A revolução dos bichos", que sempre tinha razão, transforme-se em um personagem da política brasileira. O Supremo Tribunal Federal já deixou claro que todos são iguais perante a lei, e não queremos que o país tenha um retrocesso se tornando uma versão pós-moderna da fábula Orwell, onde uns são mais iguais que outros.
Fonte: O Globo
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