- Valor Econômico
Espiral de cinismo é tão ruim quanto a polarização
A partir da corrida presidencial de 1950, a política eleitoral brasileira inventou um verbo cujo significado é abandonar um candidato do próprio partido (ou coligação) para apoiar outro. "Cristianizar" passou a se referir a casos semelhantes ao do político mineiro Cristiano Machado (1893-1953). O ex-prefeito de Belo Horizonte viu sua candidatura minguar quando correligionários preferiram aderir à volta de Getulio Vargas.
A crise política nacional entrou num estágio em que os acontecimentos deixam a sociedade sem palavras. É preciso criar novas. Como entender que a recente fúria moralizante, encampada por expressivos estratos da população e altas autoridades da República, tenha se transformado em apatia, tibieza e condescendência? A reação aos escândalos de corrupção do governo Temer não é a mesma reação que desalojou o PT do Planalto pelo "conjunto da obra" e numa tacada parlamentar. Como aceitar que um processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tenha jogado fora dois anos e meio de produção de provas contra uma chapa presidencial? Ou que denúncias como a delação da JBS sejam questionadas, desqualificadas?
As mesmas línguas de atores que, há um ano, eram arautos contra a corrupção pronunciam agora substantivos como responsabilidade, governabilidade, aval, prudência, cautela, precaução, precipitação, laudo, proteção, dúvida, (ampla) defesa.
Os verbos em voga também mudaram: aguardar, analisar, periciar, avaliar, revisar, provar (cabalmente), anular, descartar, invalidar, anistiar, barrar, estancar. À lista - em homenagem a próceres do movimento - poderíamos acrescentar ou criar outros: "jardinar", "jucar" e, principalmente, "gilmar".
No contexto da crise, "gilmar" seria, para alguns, o ato específico de rebaixar as expectativas de imparcialidade do Judiciário em prol do exacerbamento das funções e preferências políticas - e, no limite, partidárias - de um magistrado. "Gilmar" estaria para a troca ou confusão de papéis entre Poderes assim como, na arena eleitoral, "cristianizar" está para a traição a favor de candidato de outro partido.
Ministros de Supremas Cortes têm funções que extrapolam o mero conhecimento técnico-jurídico. São figuras políticas, ou com potencial de tomar decisões com viés político. Quando é inevitável e feito de modo parcimonioso, equilibrado, a percepção é de que a Justiça e a separação de Poderes estão preservadas. Do contrário, o resultado gera a sensação de favoritismo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) vive, no julgamento que continua nesta quinta-feira, mais um embate do duelo, cada vez mais encarniçado, entre o sistema político e o sistema judicial. Desde que a Operação Lava-Jato começou a revirar o país, atores políticos viram nela, primeiro, a oportunidade de surfar a onda e manobrá-la para desbancar o então governo de plantão petista. Depois, buscaram desidratá-la no atacado - vide os projetos de anistia e abuso de autoridade - e agora solapar o instituto das delações premiadas. O time dos políticos é reforçado pelas togas, seja por causa das afinidades destas com os interesses das partes em jogo, seja pela reação delas ao ativismo do Ministério Público Federal - acusado de ser o único poder que faz o que bem entende.
Momento esperado pelo sistema político é a saída de Rodrigo Janot, em setembro, e sua substituição por um(a) procurador(a)-geral da República menos beligerante e mais afável ao presidente Michel Temer, responsável pela indicação do sucessor a ser escolhido da lista tríplice da instituição.
Não por acaso, na sessão desta quarta-feira, em que a Corte começou a analisar a possibilidade de revisão dos acordos de delação premiada, foi Gilmar Mendes quem questionou com virulência as concessões feitas a delatores pelo Ministério Público Federal. Citou o caso específico da JBS, cujo dono, Joesley Batista, recebeu como "benefício dos benefícios" a extinção da pena.
A premiação a Joesley, obviamente, pode ser considerada excessiva, já que o empresário, pelos termos do acordo, fica livre para desfrutar do patrimônio bilionário, depois de confessar que comprou, nos últimos 15 anos, apoio político em troca da expansão, ou ao menos proteção, de seu negócio. No entanto, pelo momento, contexto e determinação com que critica o MPF e as delações que abalam o governo Temer, Gilmar é visto, praticamente, como um advogado-geral do presidente, da base aliada, da união de políticos que defenderam o plano de apear o PT para "estancar a sangria" da Lava-Jato. A história é conhecida desde a conversa gravada entre o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado ("É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional") e o senador Romero Jucá ("Com o Supremo, com tudo").
A possibilidade de revisão das delações - que só ganhou força quando Temer foi atingido - é uma ameaça para a continuidade da Lava-Jato e segue a mesma lógica que prevaleceu no vexame que fez história no TSE, presidido por Gilmar: muda o foco do principal, as acusações, as denúncias, o óbvio ululante, segundo Nelson Rodrigues, ou o "senhor Fato", para Ulysses Guimarães.
Sem o mesmo comportamento indignado, o relativo "apagão" da opinião pública favorece a estratégia. Falta rua. Seja pela desfaçatez dos movimentos de direita que bateram bumbo e panelas pelo impeachment, seja pelo interesse da esquerda de que Temer e tucanos continuem se afundando, num abraço de afogados, até 2018, ou pelo instinto de sobrevivência de seus líderes que torcem igualmente pelo estancamento da Lava-Jato. Do mesmo modo que o PSDB quer que Temer faça reformas para não arcar com os custos delas numa eventual volta à Presidência, o PT quer que o pemedebista freie a operação com menos pudor ou mais competência que Dilma Rousseff não teve.
A indiferença é uma marca de democracias consolidadas. Mas não é disso que se trata. Além de gerar novos verbos, a crise dissipa o bom senso e pode até inspirar novas teorias. Quarenta anos depois da "espiral do silêncio", formulada pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann, o clima nacional é de uma longa espiral de cinismo - tão ruim quanto a apaixonada polarização.
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