sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Onde está Hipólito? | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Relendo, nesses dias, "Formação da Literatura Brasileira", a decisiva obra de Antonio Candido para compreender o Brasil na produção literária de brasileiros que construíram nossa consciência social e política, reencontrei sua consistente análise sociológica da obra de Hipólito José da Costa. Foi ele editor e autor do que é reconhecido como o primeiro jornal brasileiro, "Correio Braziliense", publicado em Londres de 1808 a 1822. Diplomata, maçom e liberal, não teve vida tranquila naquele mundo de intolerância em que vivia. Foi preso em Portugal pelo Tribunal do Santo Ofício e recolhido à masmorra da Inquisição, de 1802 a 1805, da qual fugiu auxiliado pela maçonaria.

Nesse livro, que será reeditado nas próximas semanas pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e a Editora Ouro sobre Azul, Antonio Candido sublinha algumas passagens referenciais da obra de Hipólito. Aquelas que definem algumas ideias fundadoras do Brasil independente, propostas para a pátria que nascia. Ideias que, aos olhos de hoje, deveriam ser inscritas a fogo na porta do gabinete do Presidente da República, dos ministros de Estado, dos governadores, de seus secretários, dos prefeitos e dos seus auxiliares, de cada senador, deputado federal, deputado estadual e vereador, tanto da esquerda, o que quer que isso queira dizer, quanto da direita, o que quer que a direita seja. De cada ministro dos tribunais superiores, dos juízes de comarca. Das salas de aula das verdadeiras universidades, das escolas de terceiro, segundo e primeiro grau.

Em 1808, disse ele: "... Só a prosperidade do povo é quem faz a prosperidade do governo, que quando se põem obstáculos, e entraves ao progresso, e propagação das ciências, devem ficar tão raros os homens sábios, que quando o governo precisa deles, de repente, não os acha; e vê-se obrigado ou a lançar mão de um homem instruído, mas sem boa moral; ou de um homem bom, mas estúpido e ignorante, e quanto menor é o número de gente instruída, menos probabilidade há de que o Estado seja servido por homens virtuosos e sábios."

As universidades que estão sendo sucateadas neste país, o saber minimizado ou pelos populistas e ignorantes com poder, que debocham do diploma e dos títulos acadêmicos e dão aos jovens a má lição da desesperança e da estupidez de botequim; ou pelos poderosos sem discernimento, patronos de uma concepção de universidade, de escola, de professor e de aluno, que os torna equivalentes a salsichas, batatas e ruelas, produtos e não instituições e seres humanos dos quais o país depende e mais dependerá ainda no futuro. Não raro, governantes e até alunos e professores se embrenham na mistificação ideológica, no autoengano de que fazendo a apologia ao amesquinhamento de universidades como a USP, a Unicamp, a Unesp, e outras tantas pelo Brasil afora, estão defendendo a causa dos pobres. A apologia da ignorância como se fosse sabedoria popular. Não levam em conta que pobre, trabalhador e desvalido, sem a boa escola e a boa universidade, continuará pobre e desvalido porque ignorante. Nossas deploráveis estatísticas sobre desempenho escolar e despreparo generalizado para ingresso num mercado de trabalho que se moderniza rapidamente indicam o fosso do nosso suicídio educacional. As denúncias já alarmantes sobre políticos que se consideram acima da lei e da ordem, beneficiários de privilégios estamentais do antigo regime, gente que vive não só fora da lei, mas também fora do tempo, ajudam a entender porque os demagogos que solapam a educação de qualidade não podem ser, senão, filhos da pobre educação que tiveram.

Hipólito José da Costa dirá, em 1809: "Verdade é a conformidade das nossas ideias com os objetos que elas representam, ou com as ideias eternas: a verdade, logo, nunca pode ser nociva aos homens: o engano há mister de outros enganos para se sustentar; e o sistema de governar os povos com ilusões traz consigo sempre uma série de desgraças de que as páginas da história nos dão abundantes provas."

Incrível! Hipólito José da Costa já sabia o que iria nos acontecer dois séculos mais tarde. E esse brasileiro lúcido, sábio e patriota dirigia-se ao presente e ao futuro do país com palavras de cautela para o bem da pátria e em favor do bem comum. Onde está Hipólito? Não está nem na memória do povo nem na memória dos poderosos. No entanto, seus restos mortais estão ali perto da fábrica de iniquidades que nos assombra e atormenta. Faleceu na Inglaterra. Em 2001, seus restos mortais foram trasladados para o Brasil, justo preito da lucidez que nos resta, e enterrados nos jardins do Museu da Imprensa Nacional, em Brasília. Sofre ainda, revirando-se no túmulo.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “U”ma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.

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