sábado, 10 de março de 2018

Gabeira: Herdeiro sem disciplina de 68

Ex- guerrilheiro ainda quer mudar o Brasil, mas hoje se coloca ao centro e propõe voto no candidato à Presidência menos perigoso

Por Helena Celestino | Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

RIO - Fernando Gabeira marcou este "À Mesa com o Valor" para uma terça-feira, o dia mais tranquilo da sua semana. Chega exatamente ao meio-dia, numa pontualidade aprendida em seus tempos de Suécia. À espera da mesa no Gula Gula, no banco do lado de fora em uma rua mais ou menos calma de Ipanema, a conversa começa pelos tiroteios na Rocinha, tonitroantes na vizinha Gávea. Gabeira lembra-se de uma viagem ao Haiti, ainda como deputado federal, em que se hospedou na embaixada brasileira. "Cheguei exausto, fui dormir e comecei a ouvir tiros. Dormi bem à beça, parecia que estava em casa", diz, rindo.

Dias depois ocorreu a intervenção federal na área de segurança do Rio. Por ironia da história, pela primeira vez desde o fim da ditadura os militares estavam de volta ao comando da segurança da cidade. Meio século depois da explosão de rebeldia de 68, aquele já longínquo ano em que os jovens - Gabeira entre eles - foram para as ruas com a ambição de tirar os generais do poder, mudar o país e o mundo. Coube ao comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, fazer a ligação entre o passado e o presente ao dizer que não queria uma nova Comissão da Verdade ao fim da intervenção no Rio. Ele referia-se à apuração das violações de direitos humanos da época da ditadura e, com isso, tirou do porão os fantasmas deixados pela participação dos militares na política.

Gabeira sorri. "É uma ironia, sim. Só que o contexto agora é outro, o monitoramento se dá no dia a dia, com a multiplicidade de pessoas fazendo imagens nas ruas. Não vi até agora nenhum dos fatos apresentados sobre a violência sendo desmentidos. É muita mídia, diz o general, mas vai fazer o quê? Confiscar os celulares?"

Personagem de destaque desses dois tempos, Gabeira, de 77 anos, há muito não cabe mais no figurino do guerrilheiro de 1968 nem mesmo no da esquerda reciclada pós-fim do império soviético, queda do muro de Berlim, globalização e movimentos identitários. "Hoje eu me coloco mais no centro, certas saídas da esquerda eu adoto, fecho com a direita em outras posições", diz. Um exemplo? Na disputa de narrativas entre direita e esquerda, desenrolando-se paralelamente à intervenção federal na segurança do Rio, ele incorpora as duas. "É um marketing eleitoral de um governo impopular, mas em cima de uma situação real, usando uma estrutura de muita credibilidade, o Exército."

O melhor até agora, diz, é o manual feito por três jovens sobre como a população negra deve se comportar para se defender de arbitrariedades recorrentes de policiais ou soldados. "É uma proposta civilizatória que a própria polícia deveria incorporar", diz. No vídeo que viralizou, os três garotos dão dicas de sobrevivência em tempos de intervenção: se você é negro, mantenha o celular carregado para documentar abordagens e número de matrícula dos policiais; nunca corra ou faça manobras bruscas perto de blitz; não leve na mochila guarda-chuvas ou objetos grandes possíveis de serem confundidos com armas.

"As tropas têm de sair do Rio assim que a polícia estiver reestruturada", afirma. Sem medo dos recentes mimos do governo Temer aos generais, Gabeira é a favor da intervenção no Estado. Mas só vê possibilidades de redução da violência se a população se engajar neste combate, replicando de alguma maneira o modelo usado na Europa para combater o terrorismo: uma articulação entre os recursos policiais e recursos sociais, usando a internet para trocar informações sobre os acusados de crimes e receber denúncias dos moradores. "Se você acha que um determinado cara se deslocou para um bairro, lança para todos os smartphones a foto dele, procura manter a população informada e ser informada por ela."

A proposta é polêmica e vai render insultos nas redes sociais - nada a que ele não esteja acostumado a vivenciar por conta das suas várias metamorfoses políticas e existenciais. Unanimidade nunca foi o forte de Gabeira, mas ele circula bem entre tribos muito diversas.

Escritor, ativista e jornalista, com programa de reportagens na GloboNews, coluna nos jornais "O Globo" e "O Estado de S. Paulo" e comentários na rádio CBN, o ex-guerrilheiro, ex-deputado federal, ex-candidato à Presidência, ao Governo do Rio e à Prefeitura da cidade foi saudado neste ano no samba do bloco Suvaco do Cristo. Nele, os carnavalescos foram convocados a botar a sunga de crochê "para enxotar a caretice no patropi", numa referência à parte de baixo do biquíni roxo que Gabeira pegou emprestado da prima e usou numa de suas primeiras incursões a praia na volta do exílio, depois da Anistia. Era o fim da década de 70 e virou um marco nos costumes.

Dos hábitos adquiridos no exílio, sobrou hoje o figurino colorido, a alimentação saudável, a rotina de exercícios e a vida regrada. É vestido em tons de rosa e roxo que ele chega ao restaurante, onde é recebido como habitué: todos conhecem suas preferências gastronômicas. "Venho aqui todo domingo. A comida é bem feitinha e não é muito cara." Pede água com gelo e limão, frango grelhado acompanhado de arroz integral e feijão, em substituição ao arroz de linguiça proposto no cardápio. "Tenho de dar uma segurada. Nado no Flamengo, faço ioga, durmo cedo - a rotina de trabalho é pesada."

A memória de 68, meio século depois, incentiva homenagens ao jornalista que viu a passeata passar da janela da redação e foi embora com os estudantes gritando "Abaixo a ditadura". Trocou o emprego e a doce vida de Ipanema dos anos 60 pela luta armada, pela prisão, pelos dez anos de exílio. Na volta, tinha abandonado Karl Marx (1818-1883) e a classe operária na sua casa à beira do Báltico nos arredores de Estocolmo e aproximara-se de Simone de Beauvoir (1908-1986), Michel Foucault (1926-1984) e Bob Marley (1945-1981), inspiradores da luta pelos direitos de mulheres, gays e negros, da defesa da descriminalização da maconha e da causa ecológica.

O revival desse tempo começou com a reedição do best-seller "O que É Isso, Companheiro" (lançado originalmente em 1979) e continuou com o documentário "Gabeira", recentemente em cartaz nos cinemas e exibido na televisão, no qual o diretor Moacyr Góes retraça a sua trajetória com base em entrevistas de amigos e nove horas de depoimentos do protagonista dessa história. "Fui indicado para ser vice de Lula na eleição presidencial de 1989. Fui excluído porque não era macho o suficiente", diz Gabeira no filme.

Para não ficar aprisionado no passado, ele lançou seu 12º livro, "Democracia Tropical, Caderno de um Aprendiz" (ed. Estação Brasil), em que o " Gabeira pós-Parlamento" reflete sobre as últimas três décadas da política brasileira, da campanha pelas Diretas ao governo Lula e do "assustador 2016", com a Lava-Jato e o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

"Não gosto dessa coisa de filme, normalmente se faz isso quando você está morrendo ou já morreu. Para mim, a minha vida ainda vai acontecer", diz.

Aliás, a vida dele está boa, afirma. Casado com a empresária Neila Tavares há mais de uma década, duas filhas da relação com a figurinista Yamê Reis, um neto de quase 2 anos e muitos amigos cultivados ao longo das décadas, o lado afetivo corre tranquilo. Maya, a filha surfista de ondas gigantes, dá uns sustos, mas Tami, a mãe do garotinho com cara de levado, é professora na Escola Alemã Corcovado e leva a tal vida sossegada de família que Gabeira diz não ter sido preparado para viver. "Ainda não aprendi a vida doméstica, mas vou aprender quando chegar aos 85."

Enquanto isso, está na estrada de novo. Em tempos de irritação geral com o Brasil e a vontade de muitos de pegar o primeiro avião para o exterior, Gabeira tomou a direção oposta: entrou Brasil adentro. O país profundo lhe dá esperanças. "As pessoas trabalham muito, algumas são muito alegres, de bem com a vida. Todas têm sonhos. É estimulante ver um Brasil muito diversificado e otimista com o cotidiano."

Toda quarta-feira o jornalista sai de câmera na mochila para gravar seu programa semanal da GloboNews, acompanhado apenas de um amigo, dublê de motorista e técnico de som. Vai ao sabor da pauta, pensada mais em torno dos seus interesses e menos amarrada à atualidade jornalística. Na semana do julgamento do ex-presidente Lula no Tribunal Regional Federal da 4ª Região de Curitiba, foi a Bertioga ver o conflito em torno da água: os moradores dessa área do litoral paulista não aceitam a decisão do governo Geraldo Alckmin de transpor o rio Itapanhaú para abastecer 2,2 milhões de pessoas da capital.

"Os próximos anos serão marcados por conflito desse tipo. Quero aprender como se viram." Durante o Carnaval, Gabeira foi documentar a crise da imigração chegando ao Brasil: a entrada maciça de venezuelanos em Roraima já cria um mal-estar, e a xenofobia cresce. "Mas a esquerda não pode encarar essa realidade porque abalaria sua autoimagem", diz Gabeira, referindo-se à complacência com o regime dito socialista do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Pouco antes, ele estivera em Ilhéus (BA) para ver a vida dos locais pós-praga do cacau e constatou que a maioria atribui ao PT a melhoria de vida. "Lá e no interior do Nordeste consideram Lula um cara importante, e acho que votarão em quem ele mandar."

Gabeira passa quatro dias por semana no chamado "Brasil real", mas todo sábado está de volta ao Rio para cumprir os deadlines do jornalismo. No domingo faz o roteiro de edição do programa, na terça-feira grava os "offs" e na quarta-feira parte de novo. Nos entretempos, escreve colunas, faz comentários na rádio, publica livros e estuda russo, preparando-se para trabalhar na Copa do Mundo.

Ele reserva as segundas-feiras para prospectar as novidades na política. Teve encontros com vários grupos organizados em torno da defesa do novo e de caras jovens no Congresso Nacional. "Embora não tenha pretensões eleitorais, quero estimular e entender." Ele cita a reunião com o Agora!, apoiado por nomes como o apresentador Luciano Huck, a economista Monica de Bolle e a diretora do Instituto Igarapé, Ilona Szabó, entre outros integrantes do grupo. Gabeira esteve também com o Nova Democracia, legenda sob a qual se congregam o Fórum de Segurança Pública e Sou da Paz. Reuniu-se ainda com o Transparência Partidária, apoiado pelo Vem pra Rua e pela Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos, segundo informações publicadas nos respectivos sites.

"Eles mostram uma certa vitalidade, discutem, querem. Negam a política e estão tateando. Dadas as condições do Brasil, existe uma grande demanda por mudança, mas são muito modestos os indícios dessa mudança", diz Gabeira.

Algo de novo no campo da esquerda?

"Tem o Favela [lançado por Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas], que deve atuar junto da Rede [partido da pré-candidata Marina Silva]. Os movimentos sociais estão ainda muito vinculados à esquerda, que perdeu muita energia defendendo seu líder." Como exemplo, ele cita o mutismo dos sindicatos diante da ascensão e queda de Cristiane Brasil (PTB-RJ) como ministra do Trabalho.

Gabeira ainda quer mudar o Brasil, mas sem faca nos dentes. Expressa-se com calma, fala baixo e sem grandes gestos, dá muitos sorrisos e usa a ironia ao tratar dos temas que hoje incendeiam as discussões políticas e criam eternas inimizades. Recorre a palavras como "entendimento", "acordo" e "negociação" ao analisar a conjuntura política, mas critica duramente a esquerda, Lula, o PT e até os movimentos identitários. "Hoje eu tento entender a política não como a realização de um conjunto de ideias ou de um mundo ideal, e sim como a possibilidade de alterar a realidade como ela existe, do ponto de vista concreto, nos pequenos fatos."

As últimas décadas o levaram para bem longe do manual revolucionário das organizações de esquerda brasileira nos seus anos de formação política ou dos slogans grafitados por sua geração no estilo poético e urgente dos protestos de massa de 50 anos atrás. Já disse que queria " chutar o balde de 68", cansado de olhar para o passado e de criticar a luta armada a que aderiu. Mas a pergunta é inevitável: passado meio século, algum legado ficou de 68?

"Para mim, é um legado negativo porque naquele tempo aconteciam muitas coisas e agora acho tudo parado. Foi um sonho de transformação do mundo, no caso brasileiro, de transformação socialista. Desfeito o sonho, era preciso perguntar para onde ir, as alternativas que tínhamos para mudar o mundo. Fomos procurar os insatisfeitos e todos os indícios levavam às lutas identitárias", afirma.

A depressão com as derrotas pós-68 não durou muito. Mulheres, negros e gays tomaram novamente as ruas da Europa, ainda no início dos anos 70. As bandeiras em arco-íris das paradas gays, os lilazes e as caras pintadas das mulheres substituíram os protestos dos estudantes. Daniel Cohn-Bendit, o líder de Maio de 68 na França, assumiu a primeira secretaria voltada para as identidades culturais, criada nessa época em Frankfurt, um símbolo do novo momento. "Lá na Alemanha eram os imigrantes chegando e assumindo sua cultura", relembra Gabeira.

O resto é história sendo feita hoje. As mulheres vivem a terceira onda do feminismo aqui e pelo mundo e os movimentos identitários se fortalecem e impõem um novo olhar sobre a questão de gênero e raça. Vitória? Sim e não, diz Gabeira. Sim pelo peso e a importância que assumiram. Mas, ele, que voltou ao Brasil embebido nessa cultura nos anos 80, hoje acusa a esquerda de ter sequestrado esses movimentos. Para ele, erros na condução da luta identitária e os excessos do politicamente correto permitiram que os conservadores acumulassem forças, abrindo espaço para Donald Trump nos EUA e impulsionando a campanha de extrema direita do deputado Jair Bolsonaro, pré-candidato a presidente.

"Para ser atendido pelo Estado, você hoje tem de gritar e pertencer a uma identidade cultural. Com isso, o homem branco, pobre, ficou esquecido. Na campanha de Trump, os caras diziam: 'F.-se o politicamente correto'. Trump e o próprio Bolsonaro se aproveitam disso."

A tese de Gabeira é de que não adianta ficar chamando os conservadores de fascistas e nojentos. É necessário entender o momento de insegurança vivido por eles e, assim, tentar frear o ofensiva da direita conservadora. Ele dá exemplos: se houvesse negociação, a disputa vivida nas escola devido à cartilha para educar pedagogicamente as crianças poderia ter outro desfecho. "As famílias querem o privilégio da educação sexual de seus filhos. Muitos acham que a escola vai ensinar o filho a ser gay. A saída seria mandar as cartilhas para as escolas e os pais escolherem se querem os filhos assistindo a essa aula. Grande parte vai escolher ficar com a cartilha", diz.

De tudo que surgiu como herança de 68 e se fortaleceu na década de 70, a aposta de Gabeira para mudar o mundo ainda é a questão ambiental. Para ele, trata-se da única com vocação globalizante, capaz de integrar todas as correntes porque diz respeito a todo o planeta. "Não ameaça ninguém do ponto de vista pessoal, dá segurança e cria uma ética em relação às novas gerações. Você pode assustar o cara que quer desmatar, mas, aí, paciência."


Foi a questão ambiental que o levou a romper com o PT e o governo Lula. Já estava no Partido Verde e imaginava viável uma coalizão entre a esquerda e os ecologistas, repetindo o modelo alemão em que social-democracia e PV foram aliados por muito tempo. Aqui, durou pouco - só até 2003. O então deputado já vinha ouvindo histórias sobre relações não republicanas do PT e irritou-se com o descompromisso com que liberaram os transgênicos. Foi o primeiro a abandonar o barco do governo PT e não se arrepende.

"No meu entender, havia uma coligação que era uma grande quadrilha. Uma parte foi desfeita com o impeachment de Dilma, a outra ficou, e é esta que a gente tem de combater agora."

Entre as pré-candidaturas, alguma dá esperança? "Até agora, não, vamos ver com quem a gente vai ter de se arranjar." Marina Silva, com forte pegada ecológica, "não é tão contundente quanto as pessoas esperam". Gabeira gostaria de eleger alguém de centro à la Emmanuel Macron, o presidente da França, mas não acredita nas possibilidades de Geraldo Alckmin, apontado como o candidato centrista do PSDB. "Um homem comum, nada carismático, não vai preencher esse espaço. O Brasil pede líderes com personalidades fortes, sempre perto do extraordinário: Lula, Bolsonaro, Jânio Quadros [1917-1992]".

Bolsonaro? "A proposta de extrema direita seduz os jovens por enxergarem o voto nele como transgressão", diz. "Os jovens não conheceram a ditadura, a tortura. Eles se lembram do governo do PT e da corrupção, acham rebeldia votar na direita e se sentem seduzidos por isso."

Acha que Lula deve ir para cadeia? "Engraçada essa sua pergunta. Parece a de um locutor de rádio que, no dia do julgamento do Paraná, dizia que o destino de Lula era incerto. Como incerto? Incerto é o meu, o dele está selado, a lei tem de ser cumprida", diz Gabeira.

Ele sugere que os eleitores votem no "candidato menos perigoso". Para ele, a política perdeu espaço e a capacidade de revolucionar o país. " É difícil dizer que existe solução à direita ou à esquerda, qualquer uma dessas saídas pode levar o Brasil a um conflito muito desagradável. Por isso, acho melhor uma solução conciliatória", defende.

Não se fala mais de comida durante as quase duas horas desta entrevista. Muita história, muitos Gabeiras a lembrar de uma trajetória nada óbvia: da guerrilha ao exílio, a militância, o Parlamento e a volta ao jornalismo. Ele só consultou o celular uma vez e, quando olhou de novo, descobriu que já estava atrasadíssimo para gravar os "offs" do seu programa da GloboNews. "Suponho que você vai acertar a conta, então vou sair correndo." E vai pela chuva atrás de um táxi.

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