- Valor Econômico
Condições financeiras refletem 'pacto' do pós-Dilma
O Brasil está longe de resolver problemas estruturais de sua economia, o principal deles, como financiar o Estado de maneira não inflacionária. Esta é a equação jamais resolvida, a que determina todo o resto. Apesar disso, depois de o país sofrer entre 2014 e 2016 uma das mais longas recessões de sua história, Brasília e São Paulo fecharam acordo tácito: o centro do poder trabalha rápida e incessantemente para aprovar reformas institucionais e a matriz empresarial e financeira da nação assegura condições financeiras razoáveis que permitam à economia respirar durante a "transição".
As reformas, como a da Previdência, se destinam a garantir que, no futuro próximo, o setor público seja financiado pelos tributos que União, Estados e municípios arrecadam, tornando desnecessário ao Tesouro Nacional endividar-se para pagar as despesas. Em maio de 2016, quando a então presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment, firmou-se um consenso entre Brasília e São Paulo: o grave desequilíbrio das finanças públicas é a principal causa da ruína do país e, se nada for feito, a própria democracia, reconquistada há pouco mais de 30 anos, estará em risco.
Vice de Dilma, Michel Temer assumiu o poder sem ter recebido um só voto das urnas. Não há nada de errado nisso, é assim em várias democracias, mas, então, seria o caso de se indagar: com que capital político ele convencerá o Congresso Nacional a aprovar mudanças institucionais de que o Brasil tanto necessita para evitar o caos? Ademais, seu mandato era tampão. Considerando que o afastamento definitivo de Dilma só se deu em agosto de 2016, Temer teve dois anos e cinco meses para governar.
Na política nacional, as coisas funcionam mais ou menos assim: para chegar à Presidência, o sujeito precisa, grosso modo, de algo perto de 60 milhões de votos; eleito e a bordo do apoio da maioria dos que votaram no pleito, ele possui capital político suficiente para levar sua agenda ao Congresso e aprová-la; na hipótese de chegar lá porque o titular caiu (caso de Dilma), mesmo desconhecido da maioria dos viventes (Temer), seu capital político será proporcional à extensão da "terra arrasada".
Temer subiu a rampa do Palácio do Planalto sob a acusação de ter liderado golpe de Estado contra a antecessora, responsável, em última instância, por sua ascensão ao poder. O consenso, porém, que lhe permitiu governar resultou da penosa situação econômica que Dilma teimosamente produziu. Naquelas circunstâncias, era como se Temer tivesse autorização extraordinária para, inclusive, acabar com o sossego de vacas sagradas da República.
Nota do redator: quando dois emissários de Lula procuraram Fernando Henrique Cardoso durante a fase aguda da crise do mensalão, o ex-presidente lembrou-lhes que, para suceder, um processo de impeachment demanda duas pré-condições - o alarido das ruas e a maioria de votos no Parlamento -; não havia em 2005 nenhum desses pré-requisitos para tirar o petista do cargo; em 2016, contra Dilma, sobravam.
Sabedor da fugacidade de seu capital político, Temer aprovou em poucos meses medidas duríssimas, o oposto do que a presidente deposta vinha fazendo e duas mudanças "impensáveis" na institucionalidade brasileira: a criação de um teto para a expansão do gasto público e a reforma da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Teria aprovado a reforma da Previdência, tinha votos para isso, mas foi abatido, em maio de 2017, pelo escândalo do diálogo embaraçoso com um dos donos da JBS. O capital do ex-presidente esvaiu-se ali e, até o fim do mandato, seu expediente no Planalto Central resumiu-se a lutar para não ser deposto. Até seu ocaso, nada mais relevante foi apreciado pelo Congresso.
A transformação de Temer num zumbi não rompeu o pacto de Brasília com São Paulo. Numa demonstração de que o mercado vive principalmente de expectativas, as boas condições financeiras produzidas pelo acordo tácito foram mantidas porque a essência do consenso criado no pós-Dilma ainda é hegemônico. Não há espaço, neste momento, para uma agenda esquerdista, que defenda o estatismo, os privilégios do funcionalismo, o gigantismo do BNDES na oferta de crédito subsidiado, a oferta de crédito oficial a grandes empresas, inclusive multinacionais, a taxa de juros negativa...
É bom esclarecer um ponto: o que se chama de mercado somos nós, quase todos, correntistas de bancos e credores da dívida pública e não rentistas "yuppies" que, reunidos na avenida Faria Lima, conspiram diuturnamente contra a nação.
As boas condições financeiras que começaram a ser restauradas desde 2016 - taxa básica de juros (Selic) no menor nível da história, bolsa de valores valorizada (sinônimo de otimismo em relação ao desempenho de empresas nacionais) e taxa de câmbio funcional (neste caso, a volatilidade e a desvalorização do real decorrem do movimento global de ajuste das moedas frente ao dólar) - refletem a confiança no futuro, e não nos fundamentos da economia neste instante.
Desde 2014, o setor público gera déficits primários e a previsão é que só desapareçam lá por 2021 ou 2022. Quando se inclui o gasto com juros da dívida, o rombo chega a R$ 456,9 bilhões (6,54% do PIB) - déficit nominal acumulado em 12 meses até junho. Por gerar déficits primários, o Tesouro é obrigado a se endividar para pagar as contas. Em junho, a dívida pública somava R$ 5,499 trilhões, equivalentes a 78,7% do PIB.
O elevado endividamento do governo interessa a todos. Quanto maior a dívida pública, menor é a poupança disponível no setor privado para financiar o consumo dos cidadãos e o investimento das empresas; mais alta é a taxa de juros exigida pelo mercado (lembre-se, por quase todos nós) para comprar títulos públicos e, assim, financiar o Tesouro; maior é a conta do governo com juros; mais altos são os juros cobrados da sociedade em operações de crédito, dado que o Estado reduz a disponibilidade de recursos ao demandar mais financiamento; maior é a carga tributária cobrada dos contribuintes para bancar o gasto público; menor é a capacidade de crescimento da economia ao longo do tempo.
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