Aqui, na periferia, aguarda-se com fôlego preso a transmissão do governo de Trump a Biden, vitorioso nas eleições com larga margem de votos, quando se deve iniciar de fato a retomada do país da sua identidade e melhores tradições, a começar por sua agenda ambiental, ora posta a serviço dos proprietários de terras e dos interesses da mineração em solo amazônico. A partir daí, ter-se-á o ponto de Arquimedes para a regeneração da inscrição do país no cenário internacional aviltada pela figura anacrônica do chanceler que aí está. Como num jogo de dominó, seguem-se o tema crucial das desigualdades sociais tão bem posta pela candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, e sobretudo um largo debate entre as forças democráticas sobre o rumo a que o país deve perseguir na sucessão presidencial de 2022, se chegarmos até lá.
Não serão tempos fáceis os que temos pela frente, contudo certamente menos amargurados do que acabamos de deixar para trás com a sociedade impondo pela via eleitoral uma indiscutível derrota às forças anti-políticas e ao obscurantismo do governo Bolsonaro. Em particular, pela crise econômica, patente no desemprego massivo que ameaça as condições de sobrevivência das classes subalternas, já sob os letais riscos da pandemia.
Mas,
se as eleições nos trouxeram boas notícias, elas igualmente revelaram as
dimensões do nosso primitivismo e atraso políticos. Está aí o Centrão, impando
de satisfação, uma nova direita cevada pelo voto, e uma esquerda sem forças próprias
e que ainda desconhece o terreno em que pisa, nostálgica do carisma de Lula e
imune à autocrítica dos seus graves erros.
Visto
do horizonte de hoje, para as forças democráticas que aspiram por reformas
sociais o que se tem pela frente não é um cenário estimulante, decerto distante
do pesadelo em que vivíamos, percepção contrária da que medra no campo da
direita e que descortina o futuro como um campo aberto para a conquista do
poder político. Tudo permanecendo constante, como provável, acalenta-se uma
solução de centro-direita que marginalize a esquerda. Não é fora de propósito
supor que, no caso, se estabeleça um silêncio obsequioso quanto ao descalabro
do que tem sido o atual governo, já indicado no telefonema realizado pelo
prefeito recém-eleito Eduardo Paes do DEM ao presidente Bolsonaro, cujas ações
na presidência seriam estimadas pela limpeza do terreno político da presença da
esquerda.
Fora o alívio imediato que as eleições nos trouxeram, evitando a
legitimação do atual governo pelo voto, o quadro diante de nós é desalentador
quando se pensa em cenários futuros. As forças do mando tradicional
demonstraram capacidade de se reproduzirem em cidades abastadas e nos ermos
rincões do país, levando de roldão as prefeituras que se vão constituir na
plataforma das próximas sucessões, especialmente na presidencial. O travo
otimista que nos fica vem principalmente da campanha de Boulos, em São Paulo, de
Marta Rocha, de Benedita da Silva e Renata Souza no Rio, com a boa recepção que
obtiveram nos redutos periféricos de suas cidades ao denunciarem as alarmantes
condições das desigualdades sociais, faltando-lhes compreender a necessidade de
uma coalizão entre suas candidaturas.
A
sorte futura da esquerda a fim de que seus temas se tornem influentes
politicamente no que vem por aí depende de mobilizações dessa natureza. Força
própria é a senha para que ela seja ouvida nesse caldeirão de ambições
desatadas pelo poder num país que tem a sina de que cada qual que detenha uma
nesga de poder queira ser califa no lugar do califa. Por mais que seja verdadeiro
o caráter de acidente na eleição de Bolsonaro, ele não pode ocultar o fato do
nosso atraso político e da nossa incapacidade de reconhecê-lo, suprindo essa
falta com fantasias mesmo que bem intencionadas.
Nessa hora em que se acendem esperanças é preciso cautela com os que
procuram nos vender gato por lebre, com candidaturas saídas de suas cartolas
sem densidade e tirocínio comprovado. Não há caminhos de ocasião, o que se
precisa é pavimentar com segurança a estrada para o futuro na longa caminhada
que ora se inicia com espírito de luta que anime a vida popular para a ação e a
imaginação aberta para o encontro com os democratas com que marcharemos juntos.
Sem
Trump e com Bolsonaro perdido como cego em tiroteio nos dois anos que lhe
restam, abre-se uma oportunidade para um esforço bem concertado no sentido de
estimular alianças escoradas por baixo pelo apoio popular que traga de volta o
que não soubemos conservar.
Salvo tropeços imprevistos, as coisas do mundo retornam ao leito das
instituições e da cultura política forjadas no segundo pós-guerra como a ONU e
tantas outras, e não nos faltam nem a tradição e a vocação para desempenharmos
no que está por vir um bom papel nesse lugar que ocupamos.
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