Folha de S. Paulo
Em discurso, presidente reapresenta seu
programa, minimiza inflação e fala de povo armado
A inflação
anual é a maior em quase 20 anos. Passou de 12% em abril. Deve
permanecer acima de 10% até setembro, à beira da eleição. Em grande parte, é
resultado de choques mundiais graves, piorados pela desvalorização brutal do
real em 2020 e 2021.
Qualquer governo teria dificuldade de ao
menos atenuar esses choques (Covid e suas sequelas, crise de energia, Guerra da
Ucrânia etc.). Em um país com estabilidade econômica e
política, a alta do dólar poderia
ter sido menor.
É fácil perceber que a economia fica à
deriva em um país desgovernado, submetido aos objetivos de um projeto
autoritário e sob a regência da incompetência e de parlamentares negocistas.
O indivíduo que ocupa a cadeira de presidente procura então não apenas camuflar a ruína, mas o faz reafirmando seu programa de desmonte, "contra o sistema". Junta a fome com a vontade de poder autoritário, até mesmo por meio do conflito armado.
Faz tempo que a ingenuidade tola ou
conivente afirma que Jair
Bolsonaro lança cortinas de fumaça quando aparecem mais
notícias sobre a ruína que promove. É uma verdade mal compreendida por quem a
enuncia.
A fumaça é tóxica, uma arma química. A cada
lançamento de gases venenosos o país e suas instituições são intoxicadas com
ameaças mortais.
Nesta quarta-feira, por exemplo, Bolsonaro
reafirmou seu programa de poder, desta vez o associando à possibilidade de
guerra civil. Não é bem novidade, em sua carreira de crimes, em que já pregou o
conflito armado, morte em massa, fuzilamentos, tortura e genocídio de
indígenas.
"Somente os ditadores temem o povo
armado. Eu quero que todo cidadão de bem possua sua arma de fogo para resistir,
se for o caso, à tentação de um ditador de plantão", começou Bolsonaro,
com sua defesa habitual do armamento civil. Armas serviriam para a defesa de
ameaças externas (contra a invasão da Amazônia, por exemplo), mas não
principalmente.
"Vocês sabem que a pior ameaça não é
externa, é interna, de comunização do nosso país. Nós não chegaremos na
situação em que vive atualmente a Venezuela",
discursou o indivíduo que ocupa a cadeira de presidente da República.
O que é a "comunização"? Poderia
ser qualquer coisa, pois Bolsonaro e sua seita já disseram que todos os
governos, depois da ditadura até o dele, foram de esquerda. Já disse que venceu
a eleição de 2018 no primeiro turno, mas foi roubado. Vale tudo. Mas Bolsonaro
definiu o inimigo que pode ser objeto de revolta armada.
"Todos nós sabemos quem defende aquele
regime e quem defende seu ditador. Não queremos cores diferentes da verde e
amarela na nossa terra. Dizer a vocês que o outro lado quer exatamente o
diferente de nós. Nós defendemos a família, nós somos contra o aborto, somos
favoráveis ao armamento para o cidadão de bem, somos contra a ideologia de
gênero, nós somos pela liberdade da nossa economia e somos acima de tudo pela
nossa liberdade de expressão" —assim definiu o "outro lado", que
defende a "comunização" do Brasil.
É um programa, é uma ameaça, é um projeto
de subversão da ordem (não há Poderes instituídos, o Estado deixa de ter o
monopólio legal da força, "inimigos" políticos em última ou em alguma
instância podem ser objeto de revolta armada).
"E para vocês, família brasileira, a
arma de fogo é uma defesa da mesma e é um reforço para as nossa Forças Armadas
porque o povo de bem armado jamais será escravizado". As Forças Armadas
teriam o apoio de algo como milícias.
Sim, parece um projeto de Venezuela, diga-se de passagem. Mais grave, por ora, é que a baderna e a subversão armadas entraram de vez na conversa, assim como Bolsonaro já normalizara tantas atrocidades.
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