O Globo
Faltam 16 domingos para os 150 milhões de eleitores brasileiros se engalanarem no papel de protagonistas da História do país. Por um breve momento — pelo menos enquanto deposita sua esperança na urna eletrônica —, o eleitor tem o direito de se sentir participante do futuro nacional. É uma sensação valiosíssima, mesmo depois de esmaecer com o tempo ou devido a tropeços da vida. O voto democrático e universal, por ser igualitário, não revela quem somos. Revela apenas que existimos como cidadãos, o que é crucial num país de tamanha maioria invisível. Vinte anos atrás, neste mesmo espaço, escreveu-se que eleições são a única coisa com fila única de verdade no Brasil. Não existe título de eleitor gold, premier ou VIP. Nem título “terrivelmente evangélico” ou reservado a militares. O garoto candidato ao desemprego, o idoso esquecido pela vida, a mulher que rala e vota sozinha, o influencer incensado no TikTok, o próprio candidato a presidente — todos valem o mesmo na contagem dos votos. Nenhum Estado de Direito verdadeiramente democrático sobrevive numa sociedade que não leva a sério elementos básicos da vida cívica, como o respeito à verdade, à razão como meio de busca da verdade e o compromisso com o princípio fundamental da igualdade humana.
Desde que se sentou no Palácio da Alvorada,
em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem se dedicado a minar a até então sólida
confiança nacional no sistema de votação brasileiro. Esse comportamento tão
pouco republicano está sendo passado a crivo por Alexandre de Moraes, ministro
do Supremo Tribunal Federal e futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Só que inexiste reparação histórica a curto ou médio prazo para o confisco da
esperança nacional em eleições incontestes. Qualquer que seja o vencedor em
outubro próximo, o dano está feito — o eleitor terá perdido a certeza de seu
poder, enquanto o chefe da nação deposita seu voto como combatente de uma
guerra particular.
Ainda dois dias atrás, ao discursar na
cidade paranaense de Umuarama, Bolsonaro desandou a criticar o que chamou de
“nova classe de ladrão”, referindo-se “àqueles que querem roubar a nossa
liberdade” —leia-se todos os ministros do STF à exceção dos que nomeou
pessoalmente. “Se precisar, iremos à guerra. Mas quero um povo ao meu lado,
consciente do que está fazendo e de por quem está lutando… A liberdade não tem
preço, e parece que alguns não querem entender”, acrescentou.
Ah, a liberdade! Poucos ideais da
humanidade têm sido invocados com tanto ardor em 2.500 anos de pensamento
ocidental. Ao longo da História, o conceito tem representado tanto um meio para
alcançar um fim como um fim em si. Os Estados Unidos chegaram a erigir sua
identidade nacional em torno desse ideal, por mais que o atropelem sempre que
se consideram no direito de fazê-lo. Vale lembrar que o idioma inglês comporta
não uma, mas duas palavras sinônimas para a ideia de liberdade: liberty e freedom. A primeira é mais usada
para definir o direito individual de agir, crer e se expressar sem restrições,
assumindo a responsabilidade por seus atos. A segunda define a condição de
independência política, social, as garantias de vida em sociedade comumente
associadas à democracia. De Platão a Mano Brown, o tema continua sendo
inesgotável.
O uso frequente da palavra “liberdade” por
Bolsonaro, em qualquer de suas acepções, deve ser ouvido como incongruência,
quase como blasfêmia. Em três anos e meio de governo, o capitão já deu sinais
múltiplos de intolerância, de ausência total de empatia e de voluntarismo
autoritário. Fosse ele um simples cidadão, apenas intratável, rancoroso e
egocêntrico, causaria danos limitados para si e seu entorno. Por se tratar de
um presidente acometido de posse no poder, sua ideia de liberdade adquire forma
de alto risco nacional.
Em tempos de celebração pelo jubileu de
platina da rainha Elizabeth II, que nesta semana festeja seus 70 anos no trono
britânico, o mandatário brasileiro talvez tenha ouvido de raspão que a rainha
pode tudo — até dirigir sem carteira de habilitação e não pagar impostos (desde
1992, por decisão própria, passou a pagar tributos). Sua Majestade também nunca
precisou de (ou teve) passaporte para dar suas 80 voltas ao mundo. Incluído nas
“prerrogativas soberanas”, a monarca não pode ser presa nem julgada. Tem
direito a duas festas de aniversário ao ano (uma na data do nascimento, outra
em comemoração à coroação). Para o jubileu atual, 16 mil festas foram
programadas só na Inglaterra. Soa bom, não? Em compensação, a rainha está
proibida de expressar qualquer opinião política em público. Abriu raríssima
exceção dois anos atrás quando, já vacinada contra a Covid-19, alertou sobre a
dificuldade de muitos antivacinas em pensar nos outros. Tampouco pode votar ou
ser eleita, direito assegurado a qualquer plebeu brasileiro.
Convém que seja mantido intacto.
Um comentário:
Pois é,temos o mesmo valor perante o voto.
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