O Estado de S. Paulo.
Uma frente programática contra a fome e
para gerar oportunidades precisa surgir da energia de nossa indignação
Aos que teimam em dar as eleições como liquidadas, sugiro dar uma olhada no que aconteceu na Colômbia
O campo democrático deve reagir e
apresentar ideias concretas para o País. Algo transformador precisa surgir da
eletricidade de nossa indignação.
Era uma terça-feira aparentemente comum
quando a bala perdida atravessou a janela da casa e matou a cabeleireira
Gabrielle, moradora da comunidade da Chatuba, na cidade de Mesquita, Baixada
Fluminense. Com 180 mil moradores, Mesquita tem dois dados reveladores: uma das
maiores taxas de mortes por intervenção policial e uma das menores coberturas
de serviço de esgoto do Rio de Janeiro.
É nessa mesma comunidade que mora em uma
casa simples a Dona Zilda. Aos 62 anos, ela sustenta a família com a renda
proveniente da coleta de recicláveis, somada aos bicos como pedreiro que vez ou
outra pintam para o seu filho Carlos. Eu visitei a Dona Zilda no mês passado,
atrás da história de uma bailarina.
A bailarina, Camila Moreira, de 16 anos, é
neta da Dona Zilda e estudante da Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio.
Ela deu seus primeiros passos no balé aos 7 anos, em um projeto da ONG
Instituto Novo Mundo, que a duras penas sobrevive na Chatuba. Quando a conheci,
ela tinha um sonho e um problema. O sonho: conhecer Ingrid Silva, bailarina
brasileira, negra como ela, que hoje integra o prestigioso Dance Theatre of
Harlem, de Nova York. O problema: não ter dinheiro nem sequer para ir de ônibus
diariamente para as aulas e os ensaios no Theatro Municipal. Os detalhes desta
história convido você a conhecer numa das próximas edições do Domingão, se
juntando aos mais de 40 milhões de brasileiros que me dão a honra da companhia
toda semana na TV Globo.
A casa da jovem bailarina é típica dos recortes periféricos dos grandes centros urbanos. Muita gente, pouco espaço. Reboco por fazer, móveis simples e cortinas onde faltam portas aos batentes. Mas um detalhe chama a atenção: a cozinha, linda, com pisos e paredes recém-revestidos com cerâmica, uma reluzente bancada de inox, um fogão de seis bocas novinho em folha e uma imponente geladeira de duas portas. Dona Zilda, orgulhosa, dispara que tudo aquilo foi proporcionado pelo auxílio emergencial que amparou a família ao longo da pandemia.
Mas o voo foi de galinha. Quando tudo
parecia melhorar, o dragão da inflação sobrevoou a Chatuba, o desemprego bateu
à porta e a renda extra do Estado minguou. Resultado: a geladeira da Dona Zilda
ficou vazia, e o fogão, sem gás.
DEBATE. O privilégio de poder, por meio do
meu trabalho, rodar o País todo, ser recebido na casa das pessoas, ouvi-las com
atenção e me conectar às forças e às carências das famílias é o que me fez
entrar no debate público. E no debate público pretendo permanecer, firme, até o
dia em que a loteria do CEP – ou seja, o lugar onde a pessoa nasce e vive – não
determine mais as oportunidades que os jovens terão ao longo da vida.
A crise atual é cruel sobretudo com as
mulheres, como a Dona Zilda, e com os mais jovens, como a Camila. Metade das
brasileiras não teve dinheiro para alimentar a si mesma ou a sua família nos
últimos 12 meses. E temos hoje fora da escola mais de 2,7 milhões de jovens de
15 a 21 anos que não completaram a educação básica, uma catástrofe depois de
dois anos letivos inteiros perdidos durante a pandemia.
Cerca de 65 milhões de brasileiros hoje
estão inadimplentes. Um terço dos que não têm emprego está assim há mais de
dois anos. A inflação de dois dígitos compromete décadas de esforço para
domá-la e corrói o poder de compra dos salários. A renda média do trabalhador é
atualmente a menor desde 2012.
Quando Dona Zilda vai poder encher a geladeira?
Ter gás para cozinhar? Sentar-se na sala sem o risco de ser alvejada por uma
bala perdida? Ver o filho empregado? Ir à padaria em segurança? Saber que a
escola das netas tem qualidade, que a descarga não despeja resíduos no córrego
do lado de casa, que da torneira sai água tratada?
É na política que se enfrentam esses
problemas reais e se acende a chama da esperança. Só o Estado tem o poder da
transformação social exponencial de que tanto precisamos. Daí a importância de
ocupar a arena política com novas lideranças, criativas, com iniciativa e
capacidade de realização. E daí, também, a importância deste ciclo eleitoral.
Certamente teremos uma campanha
presidencial dura e truculenta. Seja porque caminhamos para o 2 de outubro com
os dois principais candidatos ostentando índices recordes de rejeição, seja
porque um terço dos que hoje manifestam ter candidato admite a possibilidade de
mudar sua preferência até o dia da votação. Ou seja: há muito jogo pela frente.
Aos que teimam em dar as eleições como
liquidadas, sugiro dar uma olhada no que aconteceu na Colômbia, no domingo
passado. Uma arrancada de última hora mudou a configuração e colocou no segundo
turno o ultradireitista Rodolfo Hernández. Assim como na série de sucesso
Stranger Things, o “mundo invertido” segue assombrando o nosso dia a dia...
Por isso prevejo uma eleição muito
apertada. Isso dá grande relevância a todas as candidaturas já postas. O
capital eleitoral acumulado por elas no primeiro turno será decisivo nos apoios
no segundo turno. E, desta vez, esperamos que tais apoios não sejam negociados
em torno de cargos, ideologias retrógradas ou quinhões do orçamento secreto,
mas em torno de ideias e compromissos.
PAUTA. Vamos precisar de adultos na sala
que falem baixo e sejam ouvidos, para não deixar o País se perder na baixaria
das agressões e fake news. O antídoto para populistas, negacionistas e
fanfarrões é uma pauta que fale com o povo, que se conecte com a rua, que
desperte nas pessoas a certeza de que a vida pode melhorar. Está mais do que na
hora de fazer isso. A quatro meses da eleição, porém, lamentavelmente, ninguém
ainda puxou uma discussão séria sobre a fome.
Há anos venho fomentando a formação de
novas lideranças e juntando brasileiros dispostos a pensar e repensar o País.
Pessoas com trajetórias notáveis e diversas, de campos de atuação distintos. Um
grupo multifacetado e multidisciplinar, com gente de todos os espectros
políticos e das mais diversas áreas – educadores, lideranças sociais, juristas,
médicos, ambientalistas e economistas – com um traço em comum: o firme desejo
de fazer do Brasil um país mais justo, eficiente e afetivo.
Meses atrás esse grupo se reuniu com o
objetivo de reiterar o compromisso com a democracia e com a recomposição de
instituições de Estado lamentavelmente degradadas nos últimos anos. Mas não
ficamos nisso. O grave momento no Brasil exige mais da sociedade civil. É
necessário propor uma solução que não seja apenas a negação do que existe ou do
que existiu. O campo democrático deve reagir e apresentar ideias próprias,
originais e concretas para o País. Algo transformador precisa surgir da
eletricidade de nossa indignação.
Da nossa reunião surgiram 22 sugestões para
2022 nas áreas de educação, meio ambiente, seguridade social e governo. (Saúde,
habitação e segurança pública devem merecer outro fórum oportunamente.) Todas
as propostas estão alinhadas a uma agenda de inclusão social, economia
sustentável, transparência e melhoria dos serviços públicos. Estamos dispostos
a abrir diálogo a fim de consolidar o quanto antes essa frente programática
potente e inspiradora.
Nas condições atuais, uma família pobre
demora em média nove gerações para ascender à classe média no Brasil. Se
quisermos acabar com essa imobilidade social, se quisermos de fato que os
milhões de Donas Zildas, Camilas e suas famílias recuperem o direito de sonhar,
nós precisamos de um projeto moderno de país com começo, meio e fim, com
arquitetura, engenharia e execução. Dá pra fazer.
22 propostas para 2022
1. Tornar fixo amplo programa de renda
básica e aperfeiçoar seu cadastro nacional
2. Revisar produtos da cesta básica e
aumentar sua desoneração
3. Fazer da diplomacia do Brasil referência
mundial na pauta climática e ambiental
4. Punir o desmatamento e premiar o morador
da fronteira amazônica que não desmatar e impedir desmatamento
5. Travar toda e qualquer iniciativa de
regularização de grilagem de terras
6. Retomar o programa de demarcação de
reservas indígenas
7. Multiplicar incentivos à bioeconomia e à
agricultura sustentável
8. Conectar toda a rede escolar pública à
internet e acelerar o letramento digital dos alunos e dos professores
9. Lançar um programa de revitalização do
acolhimento à primeira infância
10. Modernizar e ampliar a oferta do ensino
profissional, aderente à economia moderna
11. Adotar intersetorialidade e
territorialidade como pilares de políticas sociais
12. Estimular a agenda de políticas
afirmativas e ampliar a diversidade de atores na sua formulação
13. Fechar um pacto federativo pela
responsabilidade fiscal, vetando aumento de custos recorrentes sem respectivo
crescimento das receitas
14. Aprovar uma reforma tributária ancorada
na simplificação e progressividade de impostos
15. Digitalizar documentos, sistemas de
gestão e bancos de dados públicos
16. Criar uma plataforma social integrada
no ambiente digital
17. Dar transparência à execução das
despesas públicas pelos três Poderes
18. Retomar o cumprimento da Lei de Acesso
à Informação e estimular ferramentas de accountability
19. Acabar com a possibilidade de reeleição
para cargos no Executivo
20. Manter a política de cláusula de
barreiras a fim de reduzir número de partidos
21. Democratizar estrutura e atividade
internas dos partidos políticos
22. Ampliar acesso ao Fundo Partidário e
regulamentar uso do fundo eleitoral
Nenhum comentário:
Postar um comentário