O Estado de S. Paulo.
Reforma política até hoje não foi efetivada por causa de crenças em ‘governo forte’ e de que desenvolvimento só é possível com estatais
Por maiores que sejam as minhas ressalvas a
respeito da trajetória política de Luiz Inácio Lula da Silva, reconheço que
dessa vez ele agiu como se deve, rechaçando os arruaceiros abolsonorados que
invadiram Brasília com a intenção de depredar as sedes dos três Poderes.
Depredar como aviso. É óbvio que o objetivo
último de seu mentor é o golpe. Não tiveram e não terão êxito, porque o
interesse da maioria social, assumido por Lula, é a pacificação do País, o
desarmamento dos espíritos e a criação de condições para a retomada do
crescimento econômico. Cassando o passaporte de Jair Bolsonaro, ele terá de
regressar e se explicar à Justiça.
Sabemos todos que golpes e tentativas de golpe são uma constante no sistema presidencialista de governo. Mesmo durante os 21 anos dos governos militares, como já demonstrei neste espaço, todas as sucessões foram problemáticas. Uma delas envolveu um claro golpe de Estado. Quando da morte do general presidente Artur da Costa e Silva, o sucessor legítimo teria que ser o deputado Pedro Aleixo (MG), eleito para a Vice-presidência junto com Costa e Silva pelo próprio colégio eleitoral, no estrito cumprimento, portanto, da regra sucessória que os próprios militares estipularam.
Numa passagem memorável, o mestre francês
Maurice Duverger escreveu anos atrás (antes de Donald Trump): “O sistema
presidencial de governo só funciona nos Estados Unidos. Em toda a América
Latina ele degenera em presidencialismo, ou seja, em ditadura”. Cedo ou tarde,
o Brasil compreenderá isso e fará uma reforma política séria. Esta até hoje não
foi efetivada porque não nos livramos de certas crenças infantis, notadamente a
de que não podemos prescindir de um “governo forte” (leia-se um demagogo
populista) e a de que nosso desenvolvimento só será possível sob a égide de
empresas estatais, controladas pelo já referido “governo forte”. Essas duas
crenças são como uma dama da noite que nos aterroriza. Salvo os muito obtusos,
todos sabem em que pé estamos. Metade da população permanece semianalfabeta, enquanto
o mundo entra na era da inteligência artificial. Milhões aumentam o contingente
de desempregados; mais adiante encostarão na Previdência. A subnutrição atinge
milhões, que dão graças aos céus por poderem fazer a sopa da noite com os
restos de comida que encontram nas latas de lixo.
É mentira dizer que fomos sempre assim. Por
volta de 1900, muitos países da Europa, sobretudo no leste e nos Bálcãs, viviam
numa desordem muito pior, em meio a uma violência endêmica e no limiar de
confrontos armados. Viviam embebidos numa mística de guerra – não só homens
comuns desmiolados, mas também príncipes e generais portando uniformes
militares nos quais já faltava espaço para estrelas. Todos liam muito. Liam
Nietzsche, o apóstolo da guerra. Assim falou Zaratustra. A guerra finalmente
veio, generalizada, deixando um saldo de 21 milhões de mortos em combate e mais
20 milhões dizimados pela gripe espanhola, que veio logo em seguida, como
consequência da guerra.
Nós, graças a Deus, éramos governados por
capiaus, “coronéis” ignorantes que desmandaram o quanto puderam durante a
Primeira República (1889-1930), mas não tinham a obsessão do expansionismo
territorial, e assim foram relativamente poucos os brasileiros que morreram em
açougues semelhantes aos europeus.
Onde foi que perdemos o rumo? A resposta é
facílima. Quando, a partir de 1930, abraçamos a dupla mística da estatolatria e
a do “grande líder”. Industrializar, sim, mas mediante empresas estatais, o
governo investindo recursos que não possui e fechando a conta na base de uma
tributação escorchante, do endividamento e da inflação, alucinação
temporariamente interrompida pelo Plano Real.
Esse é o ponto que Lula, não obstante sua
recém-adquirida sabedoria, parece não perceber. Privatização, nem pensar; se os
salões de beleza fossem estatais, ele os manteria estatais. Empresário privado
era bom quando ia a Brasília pedir uma mãozinha: “mamar nas tetas do governo”, na
pitoresca expressão do ex-ministro Delfim Netto. O atual governo promete atuar
com energia no tocante à alfabetização. Isso é muito bom, mas é uma minúscula
fração do que necessitamos. Capacitação para o mundo moderno requer uma
revolução no sistema de ensino, e isso o governo parece nem saber por onde
começar.
O mais grave, porém, é que Lula parece
nunca ter ouvido falar em patrimonialismo. Não parece haver entendido que um
Estado com cabeça de camarão não nos levará a lugar algum. Vamos tocando o
barco com a exportação de commodities, porque investimento para recuperar a
indústria e criar empregos não vamos ter. Para o médio prazo, a conta é bem
conhecida. Nossa renda anual por habitante anda pela casa dos US$ 7,5 mil; um
quarto da do Mississippi, o Estado mais pobre da união americana. Crescendo 2%
ao ano, levaremos no mínimo 25 anos, uma geração inteira, para dobrá-la, ou
seja, para nos alçarmos a um patamar ainda ridículo.
*SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É
MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
2 comentários:
Não se trata de estatizar salão de beleza, mas a exploração do nióbio está nas mãos do banco Itaú para mandar 70% do nosso nióbio para os EUA e ter vendido para os asiáticos alguns bilhões de dólares de uma riqueza do solo brasileiro como se fosse uma mercadoria criada por empresários. Também o Brasil de dimensões continentais nunca fez uma reforma agrária. Países civilizados de todo o mundo fizeram. Por isso nós temos bilionários e moradores de rua e favelados sem saneamento básico. É isso que Lula tem que entender.
Mestre Lamounier,
preciamos sempre de suas aulas!
E aprender com elas.
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