Folha de S. Paulo
Como Trump nos EUA e Modi na Índia,
ex-presidente é ambíguo na incitação à violência e terceiriza crimes para seus
apoiadores
O bolsonarismo fia-se cada vez mais na
estratégia da "negação plausível", abraçada por líderes como o
ex-presidente americano Donald
Trump e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. A estratégia
consiste em usar ambiguidade para instigar apoiadores à violência e terceirizar
atos criminosos como ataques golpistas —e assim apagar impressões digitais
incriminatórias.
A negação plausível permite ao
ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) se dissociar de qualquer sujeira feita em seu
benefício.
Os comentários de Bolsonaro sobre os
movimentos golpistas, por exemplo, não recorrem à incitação clara, evitando que
ele possa ser responsabilizado pela violência que suas palavras eventualmente
desencadeiem. Por outro lado, suas declarações também fogem de uma condenação
enfática do golpismo, mantendo o extremismo mobilizado.
"Manifestações pacíficas, na forma da
lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios
públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda
em 2013 e 2017, fogem à regra", disse
Bolsonaro horas depois dos atos violentos de golpistas em Brasília no
dia 8.
Ele condenou as depredações, mas imediatamente as comparou a atos da esquerda. Lembrando que nem em 2013 nem em 2017 houve depredação e violência no Congresso, STF e Planalto, com pedidos amplos de golpe de Estado.
Não por acaso, a principal campanha de
desinformação circulando em grupos bolsonaristas de WhatsApp e Telegram imputa
a supostos "petistas infiltrados" os atos de violência na capital
federal. Vídeos falsamente mostrando esquerdistas invadindo o Congresso são os
mais compartilhados.
Bolsonaro também usou um discurso dúbio
para atiçar seus apoiadores em 9 de dezembro.
"Quem decide o meu futuro e para onde
eu vou são vocês. Quem decide para onde vai [sic] as Forças Armadas são vocês.
Quem decide para onde vai a Câmara, o Senado, são vocês também", disse.
"Vamos vencer", conclamou, sem
explicitar a que se referia. Em outra frase lacônica, afirmou: "Se Deus
quiser, tudo dará certo no momento oportuno".
Após sua derrota no segundo turno, em 30 de
outubro, o então presidente demorou quase 48 horas para se pronunciar. Quando
falou, fez uma crítica amena aos bloqueios dos caminhoneiros nas estradas,
dizendo que eram "métodos da esquerda", ao mesmo tempo em que
legitimou os movimentos golpistas em seu favor afirmando serem "fruto de
indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral".
Outro instrumento da estratégia de negação
plausível são os chamados "apitos de cachorro". Apitos de cachorro
usam sons inaudíveis aos humanos, que só os cães conseguem ouvir. Da mesma
maneira, ao incitar violência ou usar racismo e xenofobia para mobilizar
apoiadores radicalizados, líderes usam palavras e expressões em código, que só
serão reconhecidas por eles.
"Ao longo do meu mandato, sempre
estive dentro das quatro linhas da Constituição respeitando e defendendo as
leis, a democracia, a transparência e a nossa sagrada liberdade", escreveu
o ex-presidente em rede social após a violência de 8 de janeiro.
No discurso golpista que fez em 9 de
dezembro, Bolsonaro disse que as Forças Armadas "são um dos grandes
responsáveis pela nossa liberdade". E completou: "Quantas vezes eu
disse, ao longo desses quatro anos, que temos algo mais importante que a
própria vida, que é a nossa liberdade?"
A palavra "liberdade" é entendida
pelos bolsonaristas no contexto das supostas tentativas do STF, da imprensa e
do establishment de censurar e sabotar Bolsonaro e seus apoiadores.
A defesa dessa "sagrada
liberdade" justificaria ataques contra "ditadores" do Supremo,
do Congresso, da esquerda e da mídia. Ou seja, movimentos golpistas seriam a
reação dos "patriotas" e "cidadãos de bem" aos ataques da
esquerda à sua liberdade de defender sua família, sua religião e preferências
políticas.
O ex-presidente Trump também recorreu
várias vezes à ambiguidade para insuflar seus seguidores, ao mesmo tempo em que
negava ter qualquer relação com a violência que se seguia.
Em setembro de 2020, em um debate
presidencial, ele se recusou a condenar o grupo extremista de direita Proud
Boys e, dirigindo-se a eles, afirmou: "Stand back and stand by. (Esperem e
estejam preparados, em tradução livre). Alguém tem que fazer alguma coisa em
relação à esquerda e aos antifas."
Três meses depois, os Proud Boys seriam a
tropa de choque da invasão do Capitólio, em que radicais tentaram impedir a
certificação da vitória de Biden na eleição.
Ao longo do governo, Trump usou
frequentemente apitos de cachorro como "americanos de verdade",
"maioria silenciosa" ou "o movimento" para se referir a
seus apoiadores, na maioria brancos, em oposição a expressões pejorativas para
mexicanos, estrangeiros e negros.
Após sua derrota na eleição, porém, ele
abandonou qualquer pretensão de sutileza. Em 19 de dezembro, o republicano
tuitou: "Grande protesto em D.C. (Washington DC) em 6 de janeiro". E
acrescentou "Estejam lá, vai ser uma loucura".
O indiano Narendra Modi também empodera os
radicais hindus, importantes para mobilizar sua base mais radical. Quando há
ataques dos extremistas contra muçulmanos, ele costuma silenciar ou demorar
para condenar a violência —e sempre tem o recurso de dizer que não teve nada a
ver com isso. Tal qual Trump e Bolsonaro.
É o contrário do lema do ex-presidente
americano Harry Truman, que mantinha em sua mesa de trabalho uma placa com os
dizeres: "The Buck Stops Here" (em tradução livre, a responsabilidade
para aqui). Era a ideia de Truman de que o presidente seria, em última
instância, responsável por seus atos e decisões de seu governo.
O objetivo da negação plausível é sempre o
mesmo —evitar ser responsabilizado por seus atos.
Como lembrou Rafael Mafei, professor da
Faculdade de Direito da USP, em artigo na Revista Piauí, lideranças petistas
foram condenadas pelo STF por terem "domínio do fato" em relação aos
crimes do mensalão. A dúvida é se o Judiciário voltará à teoria para desmontar
a negação plausível e, eventualmente, responsabilizar Bolsonaro.
5 comentários:
Brilhante! Parabéns à autora e ao blog por divulgar este texto!
Lembrou bem.
Esperta e competente Patrícia Campos Mello!
Brilhante como sempre, PCMelo!
Charles Pessanha
Patrícia,aquela que foi atacada por Bolsonaro.
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