Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Como lembra o ótimo “Poder camuflado”, de
Fabio Victor, os militares se veem como tutores da sociedade desde a fundação
da República
1. Já contei neste
espaço que servi no CPOR de Porto Alegre. Foi em 1992, ano do impeachment de
Collor, da conferência internacional do clima no Rio de Janeiro e da demarcação
das terras Yanomami. No pelotão havia um jornalzinho, eu era um dos editores, e
nessas páginas lidas 30 anos depois encontro excertos do pensamento militar
médio da época: nós fazíamos entrevistas em que o personagem da edição dava
respostas breves, seguras o bastante para não causar problemas com a cúpula do
quartel.
Assim, dá para dizer que oficiais da ativa de então - no caso, tenentes e majores que entrevistamos - se sentiam à vontade para falar publicamente de democracia (“é muito boa se funcionar”), ecologia (“importante, mas estão espetacularizando demais”), Amazônia (“eu queria ter o padrinho que os índios têm”). Diante da pergunta “qual o maior problema do Brasil e qual a solução?”, um deles retomou o tema mais sensível nos discursos que passamos o ano ouvindo tristemente, entre faxinas, guardas e sessões de Ordem Unida: “Salário dos militares. Aumento”.
O preâmbulo pessoal não é por acaso. O CPOR
é uma espécie de versão resumida das Agulhas Negras, a academia que forma o
oficialato brasileiro. No debate sobre a presença fardada excessiva em governos
recentes, é na própria mentalidade da caserna - sua autoimagem, seu papel político
autoimposto - que está parte dos argumentos. Como lembra o ótimo “Poder
camuflado”, do jornalista Fabio Victor (Companhia das Letras, 446 págs.), as
Forças Armadas se veem como tutoras da sociedade brasileira desde a fundação da
República: às vezes na linha de frente, às vezes nos bastidores, nunca como o
que a tradição francesa de tropas profissionais chama de “o grande mudo”.
2. Muita coisa
mudou de 1992 para cá. Óbvio que um tenente ou major daquele tempo não
representa um general de hoje, com sua experiência de comando em eventos
historicamente decisivos - da missão no Haiti (iniciada no governo Lula) à
intervenção na segurança do Rio (governo Temer), da relação com ministros da
defesa civis (a partir de FHC) aos embates com a Comissão da Verdade (instituída
por Dilma e centrada em crimes da ditadura 1964-1985). Mas não surpreende que
no geral, e somando o registro do jornalzinho com as minhas lembranças, os
militares sigam ligados a temas e juízos que atravessaram décadas: afinal, não
houve reforma curricular nas escolas de Exército, Marinha e Aeronáutica,
organizações que vivem num mundo à parte, com seus sistemas autônomos de
educação, saúde, previdência, justiça.
Nesse contexto, o problema dos salários não
é só um detalhe corporativista. Em 1992, o parlamentar que expressava a
insatisfação da tropa a respeito era Jair Bolsonaro. Persona non grata no
Exército do qual havia sido expulso, proibido de entrar em quartéis para evitar
o contato dos soldados com suas ideias extremistas (o que fazia sentido numa
realidade analógica), na prática ele personificava a autoestima elevada de uma
casta - a mesma que até hoje considera justos institutos como a pensão
vitalícia para filhas de oficiais (as do torturador Carlos Alberto Brilhante
Ustra, por exemplo, ganhavam R$ 15,3 mil por mês cada em 2021).
Um dos pontos altos de “Poder camuflado” é
a genealogia dessa relação, cujas arestas foram se aparando com o tempo.
Contaram aí episódios particulares, como as pazes feitas entre Bolsonaro e o
general que tutelou a transição democrática dos anos 1980, Leônidas Pires
Gonçalves, mas algo essencial nunca mudou: a par da forma, os pronunciamentos
do então deputado do baixo clero vocalizaram anseios profundos de seus
ex-colegas de farda. Questões orçamentárias tiveram peso em momentos de crise
com as instituições civis, algo recorrente desde o governo Sarney, e o discurso
extremista é só uma forma menos articulada, menos eufemística, de expressar o
golpismo que em horas decisivas muitos oficiais superiores brasileiros não hesitaram
em considerar.
3. A ascensão
bolsonarista é uma história de mão dupla em relação aos militares: quem dobrou
quem, e a partir de quando? O anticomunismo histórico da corporação, que
durante a Guerra Fria alimentou a ditadura e na democracia virou antipetismo
(com toques de udenismo antipolítica), é bastante compatível com o discurso
conservador de costumes (igualmente udenista) radicalizado pelo ex-capitão na
era das redes sociais. As justificativas a respeito dadas pelos entrevistados
de Fabio Victor às vezes soam razoáveis, fundadas num cansaço com os escândalos
de corrupção dos governos petistas, mas não resistem aos tantos fatos que as
desmentem: entre eles os escândalos do governo Bolsonaro, apoiado pela imensa
maioria da caserna até o fim.
Algo parecido ocorre com falas
aparentemente legalistas, na boca dos mesmos oficiais que agiram contra a
democracia antes e depois de 2018 - o Eduardo Villas Bôas do célebre tuíte
contra o STF, o Sérgio Etchegoyen que chamou Lula de covarde na esteira do golpe
frustrado do 8/1. Comentando a atuação de Celso Amorim como ministro da Defesa
(governo Dilma), o mesmo Etchegoyen explica o que vê como incompatibilidade
entre um chefe com origem no Itamaraty e seus então subordinados de farda: “São
carreiras com linguagens completamente diferentes (...). É como o general
Augusto Heleno uma vez disse: ‘Botaram um presidente do Flamengo para cuidar da
torcida do Vasco.’”
Involuntariamente, a comparação acaba
sintetizando a tragédia que vivemos hoje. Porque a linguagem da diplomacia é a
que reproduz os fundamentos da política: o entendimento sobre a necessidade da
negociação, a leitura conjuntural (interna, externa) feita a partir de debates
abertos com a sociedade (sem constrangimentos hierárquicos, sem confundir
adversários com inimigos). A ausência de autocrítica em relação ao que
aconteceu nos anos 1960/70, um dos combustíveis da radicalização fardada na
época da Comissão da Verdade, não deixa de ser decorrência desse abismo
cultural: Exército, Marinha e Aeronáutica só teriam a ganhar com o próprio
arejamento, em vez de seguir presos a dogmas superados pela historiografia
séria, a crimes cometidos por uma geração que em bom número já morreu.
Na pequena escala do CPOR, era comum
fazermos piada com a pretensão militar de querer ditar os rumos do país, já que
nosso dia a dia numa de suas instituições de ensino superior era um contínuo de
obtusidade, de mandonismo baseado em regras cujas justificativas eram elas
mesmas. Nunca esse modo de pensar e agir foi tão escancarado como no período
Bolsonaro. O resultado, que foi do catastrófico ao patético em casos como o de
Eduardo Pazuello à frente da Saúde durante a pandemia, está aí para nos lembrar
do que não foi feito - e quem sabe ainda possa sê-lo - para a democracia enfim
calar a grande tagarelice.
*Michel Laub, jornalista e
autor dos romances "Diário da Queda" (2011) e "Solução de Dois
Estados" (2020)
16 comentários:
Muito boa a análise! Parabéns ao autor e ao blog que a divulgou!
O que o GENERAL Pazuello entendia de SAÚDE? Militarizou o ministério da Saúde e nenhum destes militares tinha conhecimento ou prática com saúde pública e de CIVIS.
O que o ALMIRANTE Bento entendia de ENERGIA e de MINERAÇÃO? O sujeito tinha uma longa vida na Marinha, talvez até uma brilhante carreira, mas administrar órgãos públicos não militares é totalmente distinto, e em setores que o almirante nem tinha conhecimento.
Como um policial federal vai comandar a Funai, com todas as complexidades das centenas de etnias que os antropólogos e sociólogos ainda têm dificuldades para entender? O governo tem centenas de antropólogos e sociólogos com experiência de contatos constantes com os indígenas, e coloca um POLICIAL para comandar um órgão tão importante e complexo?
Bolsonaro escolheu CÚMPLICES, não ministros e nem técnicos competentes!
NÃO é bem assim. Sabemos q um generaleco não tem conhecimento pra comandar a Saúde etc.
Sabemos disso.
Impressiona, MUITO, a falta de brio dos milicos. Eles deveriam dizer q não aceitam o convite. Mas aceitaram. E, dentre várias outras sinecuras, aceitaram tudo. SABE, NAO É SÓ AQUELE NEGÓCIO DE MANDA QUEM PODE. É CANALHICE MESMO. MAIS UNS $5 MIL NO MEU ORÇAMENTO FAMILIAR. GENTE DE MERDA! QUE SE VENDE FÁCIL, COMO O ALMIRANTE-MULA. SIMPLES ASSIM. GENTE SEM ESPINHA DORSAL, QUE FICA DE QUATRO POR UMA SINECURA.
Acho que pode ser um pouco de acreditar que é um compromisso aceitar qualquer missão dada pelo presidente/comandante, naquele espírito de "missão dada é missão cumprida".
"As justificativas a respeito dadas pelos entrevistados de Fabio Victor às vezes soam razoáveis, fundadas num cansaço com os escândalos de corrupção dos governos petistas, mas não resistem aos tantos fatos que as desmentem: entre eles os escândalos do governo Bolsonaro, apoiado pela imensa maioria da caserna até o fim."
Conclusão: os meus corruptos são bons e eu os compreendo. Os corruptos dos outros é q são problema. Q esperar de milicos? NADA, claro, é a ideologia, e não a honestidade, que manda. Vejam o almirante-mula - se tivesse, esse milico, uma formação boa, NÃO teria se curvado TANTO, tanto q apareceram os glúteos.
"...incompatibilidade entre um chefe com origem no Itamaraty e seus então subordinados de farda..."
Claro. Os milicos são muito ruins. Nenhum diplomata, nem ernesto araujo, desonrou sua instituição quanto o pazuello. Como pode um milico contra vacina? Q nem sabe onde fica Manaus? Q obedece porque tem quem mande? Puts, o milico ganha em ruindade de qq um.
"Exército, Marinha e Aeronáutica só teriam a ganhar com o próprio arejamento, em vez de seguir presos a dogmas superados pela historiografia séria, a crimes cometidos por uma geração que em bom número já morreu."
Conclusão: milicos estão presos a algo NÃO SÉRIO. Claro! Pra fazerem tanta bobagem, se humilharem tanto, a ponto de almirante se fazer de mula de muamba, não há espaço pra seriedade.
"..., já que nosso dia a dia numa de suas instituições de ensino superior era um contínuo de obtusidade, de mandonismo baseado em regras cujas justificativas eram elas mesmas."
Isso fala por si próprio. Mas obtusidade é pouco. Obtuso pode ser honesto. Um almirante-mula pode ser obtuso, mas, honesto?
Porra, missão dada é missão cumprida, mané! Manda quem pode, obedeço, caraio. O cabra me deu a missão de ser mula de muamba e ... eu cumpri. Realizei a missão. Sou foda!
É isso q ensinam nas "cademia miliquenta"? Ensinam isso? Esses milicos são mais burros e despreparados do que eu pensava.
Se minimamente preparados, se negariam A TAMANHA CAFAJESTAGEM. SIMPLES ASSIM.
--Missão dada é missão cumprida, chefe. Aprendi na "cademia" Aguardo suas "ordis".
-Tranquilis. Passe essa bolsa pra mim na "Fândega". Tô sem tempo.
--Q tem nessa bolsa, chefe?
--Bijuterias da micheque.
--Xá comigo, chefia. Sou almirante. Ninguém tem coragem de me parar.
E um auditor da Receita resistiu ao presidente-genocida, ao almirante-mula, ao Cid, ao sargento tainha...
E um almirante não resistiu; agora, foge de se explicar. E o ex vice-presidente diz q a corda rompe do lado mais fraco. Romper apenas do lado mais fraco, demonstra, mais uma vez, que o almirante não aprende. Faça algo de bom pelo Brasil, almirante. Diga quem armou essa patacoada.
Isso. Demonstre q nas Forças Armadas ainda tem gente de bem, verdadeiramente patriota, não patriotária.
Esse caso de joias de milhões de dólares para Michelle ainda parece normal, estranho e se fosse para a atual primeira-dama. Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
O gosto de Lula para mulheres e terrível. A dona Marise foi exceção.
Aposto que ela se ligou e deve estar expelindo a lavra que nem um vulcão.
Bagulho receber pedras preciosas dos árabes? Nem pensar. Michelle é nova e bonita, isso dói pacas.
Nao foi à toa que o Putin esteve muito atencioso. O Temer tem gosto refinado, provavelmente sua mulher também receberia pedras preciosas, mas essa outra só receberia cascalho e isso doi. E por isso que está doendo tanto, os petistas haverão de falar sobre isso até a última encarnação, jogaram sal na ferida, dói, dói, doi, dói
Que babaca! Querendo aparecer com piada só mostra o quanto é bobão, não esqueça de usar o babador para a baba.
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