sábado, 30 de dezembro de 2023

Eduardo Affonso - Depende do contexto

O Globo

A ditadura venezuelana, possivelmente também a nicaraguense, a chinesa, a iraniana, pode ser só uma narrativa

Este foi o ano da relativização geral (não confundir com a teoria desenvolvida por Einstein). Seu pressuposto é não haver referencial ético absoluto — ou, parafraseando Pirandello, o primado do “assim é (se lhe convém)”.

A mais completa tradução de 2023 pode ter sido dada por Liz Magill (então presidente da Universidade da Pensilvânia), Claudine Gay (presidente da Universidade Harvard) e Sally Kornbluth (reitora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, MIT). Questionadas se manifestações pedindo a morte de judeus violariam as regras de bullying e assédio em seus campi, as três tergiversaram: “Depende do contexto”. Haveria providências se o discurso antissemita fosse “generalizado e severo”. Se os militantes deixassem de apenas clamar pela extinção de um povo e partissem para as vias de fato.

Teria Claudine Gay — negra — dado a mesma resposta se a pergunta fosse sobre atos racistas? Teriam elas, mulheres, sido tão evasivas a respeito de ataques misóginos? Seriam as microagressões — tão enfaticamente combatidas no meio acadêmico — mais relevantes e perigosas que ameaças à vida? Pelo jeito, depende de quem sejam o agressor e o agredido.

Aliás, esses são conceitos que também dependem do contexto.

— A decisão da guerra foi tomada por dois países, Rússia e Ucrânia — afirmou nosso autocandidato a Nobel da Paz quando da ofensiva de Moscou contra Kiev.

E triplicou a meta, equiparando a reação israelense à barbárie terrorista do Hamas e pedindo bom senso, salomonicamente, tanto à usurpadora Venezuela quanto à usurpada Guiana. Não é mais líquida e certa a culpa ser do criminoso, não da vítima. Depende.

A ditadura venezuelana — possivelmente, também a nicaraguense, a chinesa, a iraniana — pode ser só uma narrativa. Afinal, democracia é uma coisa muito relativa, não? Quase tanto quanto a ciência — louvada quando das vacinas, objeto de desprezo ao definir sexo em termos biológicos.

Depois da desastrosa gestão ambiental entre 2018 e 2022, a agenda climática finalmente ganhou relevância no programa de governo, agora empenhado em geração de energia limpa, redução das emissões de gases de efeito estufa, busca da neutralidade de carbono — certo? Depende: ela dura até soar o canto da sereia da Margem Equatorial ou o convite para participar da Opep. Economia verde e ecoeficiência, sim — mas... depende.

Outro que depende do contexto para existir é o Tribunal Penal Internacional, em Haia. Existia em abril, quando Lula queria o antecessor julgado naquela instância; cinco meses depois, o mesmo Lula jamais tinha ouvido falar do TPI — porque aí se tratava do julgamento de um parceiro, o ditador russo Vladimir Putin.

E dá-lhe relativizar as falas preconceituosas ou irresponsáveis. São apenas deslizes, ruídos, gafes, falhas de comunicação. São escorregões (quem nunca?), vacilos, pisadas na bola. O absurdo se torna “polêmico”; o indefensável, “controverso”. Pau que dá em Chico não dá em Francisco — e é comovente o esforço de parte da mídia para salvar Lula de si mesmo.

Foi em 2023 que a esquerda mundial — tida como mais educada e esclarecida que a nossa — mostrou sua verdadeira face. Tomara que em 2024 comecem a surgir alternativas a essa esquerda e àquela direita que não aprendem nada nem esquecem nada. Alternativas que nos lembrem de que há valores inegociáveis.

Um comentário:

marcos disse...

CAdê o Daniel? MAM