sábado, 30 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

MP que acaba com desoneração desrespeita Congresso

O Globo

Medida desafia decisão tomada e reiterada pelos parlamentares em defesa da geração de empregos

Está certo o Congresso ao considerar uma afronta do Executivo a Medida Provisória (MP) que, entre outras providências destinadas a ampliar a arrecadação, acaba com o regime de desoneração da folha salarial vigente para 17 setores da economia, responsáveis por mais de 9 milhões de empregos. Depois de debatida e aprovada em outubro, a prorrogação por quatro anos da desoneração foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Congresso derrubou o veto presidencial, e ontem a lei foi publicada no Diário Oficial da União. São, portanto, mais que justificados os protestos despertados pela MP, que reonera a folha a partir de 1º de abril de 2024. Até o Congresso votá-la (no prazo de 120 dias), a programação orçamentária e os investimentos das empresas afetadas estarão prejudicados.

Em vez de atropelar o Parlamento, o Executivo deveria ter apresentado suas sugestões por meio de projeto de lei, permitindo amplo debate. A ânsia arrecadatória para tentar zerar o déficit das contas públicas no ano que vem não justifica desafiar decisão recente e soberana da maioria dos deputados e senadores em prol da criação de empregos. Na Câmara, a derrubada do veto recebeu 378 votos favoráveis e apenas 78 contrários. No Senado, a vantagem foi de 60 a 13. Por isso não causou surpresa a reação crítica dos congressistas à afronta do governo.

O senador Angelo Coronel (PSD-BA), relator no Senado do projeto que prorrogou a desoneração, foi didático ao lembrar o apoio dos parlamentares à pauta do Ministério da Fazenda. “Criamos alternativas para zerar o déficit. Aprovamos a lei das offshores, das bets e criamos novas receitas”, afirmou. “O governo tem de entender que é preciso haver parceria entre Executivo e Legislativo.” A deputada Any Ortiz (Cidadania-RS), relatora na Câmara, fez coro: “O governo está contrariando a vontade do Congresso, que representa a totalidade dos brasileiros, e causando enorme insegurança jurídica”.

Instaurada em 2011, a desoneração provou ser um instrumento eficaz para criar postos de trabalho. Está em vigor para 17 setores intensivos em mão de obra, como telesserviços, têxtil, calçados, logística e comunicação (que inclui empresas como a Editora Globo, que publica O GLOBO). Entre janeiro de 2019 e agosto de 2023, os empregos formais nos 17 setores cresceram 18,9%, ante aumento de 13% nos demais, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Entre janeiro e agosto de 2023, os setores criaram mais de 300 mil postos de trabalho, ajudando a reduzir o desemprego, que em novembro chegou a 7,5%, menor nível desde 2014.

Em nota, o Movimento Desonera Brasil lembrou que a política cria um ciclo virtuoso por gerar mais arrecadação para a Previdência Social, mais Imposto de Renda, mais recolhimento para o FGTS e menos custos com auxílio-desemprego e outros gastos sociais. A arrecadação gerada pela desoneração em 2022 foi de cerca de R$ 22 bilhões. É verdade que ela não exime o governo de buscar soluções mais abrangentes para reduzir o custo de geração de emprego no Brasil, um dos maiores do mundo. O governo deveria apresentar — e em seguida o Parlamento deveria debater — um plano com esse objetivo, sem prejuízo ao equilíbrio fiscal. Baixar uma MP passando por cima de uma decisão tomada e reiterada pelo Congresso é a pior solução possível.

Ação do New York Times tenta fazer ChatGPT reconhecer autoria humana

O Globo

Jornal americano acusa robô de bate-papo de copiar seus textos e de violar direitos autorais

O New York Times foi o primeiro veículo da grande imprensa americana a entrar na Justiça acusando um sistema de inteligência artificial (IA) de violar direitos autorais. Argumenta que milhões de seus artigos foram usados, sem permissão, para treinar o software do ChatGPT — robô de bate-papo que popularizou a IA e agora compete por audiência com o próprio site do jornal. O caso envolve OpenAI (criadora do ChatGPT) e Microsoft (sua maior investidora ) e será acompanhado de perto por produtores de conteúdo do mundo inteiro.

O aprendizado de máquina, tecnologia responsável pelo avanço recente da IA, depende de informações existentes para treinar os softwares. Quanto mais informações, melhores as respostas. Só que os dados costumam ser produzidos ou fornecidos por terceiros — nem sempre consultados. Para desenvolver o ChatGPT, a OpenAI fez pouco-caso dos direitos autorais, sob a alegação (falaciosa) de que todo autor — mesmo um software — consulta obras para produzir seus textos. Só esquece que a legislação distingue o uso legítimo mediante citação (fair use) do plágio.

A ação do New York Times apresenta exemplos flagrantes de cópia. Há respostas do ChatGPT praticamente idênticas a trechos de artigos do jornal. O Bing, mecanismo de busca da Microsoft alimentado pelo ChatGPT, traz resultados literalmente iguais aos de um serviço do New York Times, sem sequer oferecer um link aos artigos originais. Para ter acesso às informações do jornal, é preciso pagar uma assinatura. Ao copiá-los, portanto, a OpenAI ataca o coração do modelo de negócio do jornalismo. No processo, o Times também chama a atenção para os danos à marca quando citado em respostas erradas ou fora de contexto (casos de “alucinação” da IA).

O uso abusivo de conteúdo jornalístico por empresas digitais não é novo, e recentemente a legislação ou a Justiça têm obrigado, em diversos países, redes sociais ou mecanismos de busca a remunerar veículos da imprensa. A própria OpenAI firmou contrato com a agência de notícias Associated Press e com o grupo alemão Axel Springer, dono de veículos como Bild, Politico e Business Insider. Mas não chegou a acordo com o New York Times. No processo, o jornal afirma com toda razão: “Se o Times e outras organizações de notícias não puderem produzir e proteger o jornalismo independente, haverá um vácuo que nenhum computador ou inteligência artificial poderá preencher. O custo para a sociedade será enorme”.

Escritores também se tornaram vítimas do avanço da IA sobre os direitos autorais. Em setembro, autores como Jonathan Franzen, John Grisham e George R.R. Martin entraram com processo acusando a OpenAI de “roubo sistemático em grande escala”. Em fevereiro, a agência Getty Images moveu ação pedindo reparação à Stability AI, dona de uma ferramenta de imagem, acusada de uso ilegal de mais de 12 milhões de fotos e legendas. Nessas ações está em jogo não apenas a remuneração ou a sobrevivência de produtores de conteúdo, mas o reconhecimento da autoria humana em tempos de IA.

Diesel realista

Folha de S. Paulo

É correta a decisão do governo, ajudada pelo mercado externo, de reonerar o óleo

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tomou a decisão acertada de voltar a cobrar PIS e Cofins sobre o óleo diesel, medida patrocinada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A partir de janeiro, sobre o litro do combustível incidirão tributos em torno de R$ 0,33.

A providência vai na direção correta, em primeiro lugar por acabar com um privilégio para o diesel, dando tratamento mais uniforme à tributação de derivados. Além do mais, anula-se um incentivo ao consumo de um poluente.

Deve haver também melhora da arrecadação de impostos, o que pode contribuir para evitar déficit ainda mais preocupante nas contas federais. Por fim, trata-se de atitude que mostra salutar realismo tarifário, o que em muitas situações não foi a escolha de gestões petistas, em particular na área de energia e sob Dilma Rousseff.

A desoneração do preço do diesel fora obra de Jair Bolsonaro (PL), que demonstrava grande e demagógica preocupação com o assunto. Em março de 2021, pressionado por sua base caminhoneira e pela inflação crescente, que chegava a 6,1% ao ano, o então presidente decretou a desoneração.

A inflação chegaria ao pico de 12,1% anuais em abril de 2022, agravada também pelos preços dos combustíveis, em alta depois da deflação da pandemia e por causa da Guerra da Ucrânia.

O cancelamento do imposto acabou sendo estendido até o fim de dezembro de 2022 —e prorrogado por Lula até o final deste 2023, devido também a embates no governo e por pressão do PT, que queria evitar um aumento de tributo logo no início do mandato. Nota-se mais uma vez o quanto o assunto é politicamente enviesado.

A queda do preço internacional do petróleo e, em particular, do diesel, certamente facilitou a decisão do Planalto, pois atenuou pressões e favoreceu a linha defendida desde o início por Haddad.

Em duas ocasiões neste mês, a Petrobras reduziu o valor que cobra de distribuidoras em um total de R$ 0,57, superior, pois, ao do imposto que voltará a incidir sobre o produto. Segundo a petroleira, neste ano a baixa foi de R$ 1,01 por litro, queda de 22,5%.

Mesmo com tais reduções, o combustível está neste momento perto do nível da cotação externa relevante para o mercado brasileiro.

Espera-se que essa decisão de realismo tributário, tarifário e fiscal seja um norte da conduta do governo, não apenas na Petrobras ou em combustíveis. Há graves distorções no setor de energia elétrica, por exemplo, que clamam por um programa de mudanças.

Além do mais, a depender de flutuações de mercado e de humores políticos, sempre pode haver novas tentações de distorcer o mercado.

Aperfeiçoar câmeras

Folha de S. Paulo

Sem controle, mau uso dos dispositivos por policiais pode minar eficácia

A recente e pioneira experiência paulista com o uso de câmeras corporais em policiais militares, infelizmente ainda pouco replicada em outros estados, trouxe a curto prazo resultados inquestionáveis.

Em 2021, a letalidade policial no estado desabou 85% nos batalhões que implementaram a política. De 2021 a 2022, a morte de jovens entre 15 e 24 anos pela polícia caiu 46%, segundo dados do Instituto Sou da Paz. Os agentes também estão mais protegidos: entre 2018 e 2022, houve queda de 44% nos óbitos, conforme o mesmo estudo.

É consenso entre especialistas, contudo, que a tecnologia, apesar de sua eficiência, não constitui uma panaceia em segurança pública.

Sem diretrizes claras sobre o uso das câmeras nas fardas e o armazenamento das imagens, e sem mecanismos de controle externo e interno, a política pode ser cooptada pela cultura policial de ausência de responsabilização —ou, pior, desaparecer por completo por falta de apoio político e institucional.

Uma das lacunas é a falta de uma governança adequada sobre os dados gerados pelos equipamentos.

Reportagem do portal UOL veiculada no último dia 20 revelou que policiais militares de São Paulo aprenderam variadas formas de burlar o sistema, reduzindo, portanto, sua função de fornecer evidências de abusos e outros crimes.

Excluir vídeos ou deixar que eles sejam apagados automaticamente, mudar a data da gravação ou cobrir a lente da câmera são práticas que requerem apuração rigorosa.

Em setembro, no Rio de Janeiro, investigação da Corregedoria da PM apontou que 39 policiais burlaram seus equipamentos. Na ausência de cadeias de revisão das imagens e responsabilização por desvios, as câmeras não surtirão os efeitos que delas se esperam.

É especialmente relevante que haja imagens em grandes operações de segurança pública com maior risco de ocasionar mortes. O país tem uma triste tradição de letalidade policial, que no primeiro semestre deste ano, segundo reportou a Folha, apresentou tendência de alta em ao menos 16 estados, incluindo São Paulo.

Se acompanhadas de inteligência e tecnologia de ponta e sob a devida vigilância de seus conteúdos por instituições públicas independentes, as câmeras podem contribuir inclusive para a atuação policial, servindo de prova quando a mesma for questionada. Todos tendem a ganhar com seu uso: a população e os próprios agentes.

Dando murro em ponta de faca

O Estado de S. Paulo

A pretexto de equilibrar o orçamento em 2024, governo enfrenta Congresso e anuncia reoneração da folha de pagamento por meio de medida provisória editada em pleno recesso parlamentar

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, decidiu editar uma medida provisória (MP) para reonerar a folha de pagamento de alguns dos principais setores da economia brasileira. Segundo ele, a proposta vai contribuir para manter o orçamento equilibrado e está em linha com a meta fiscal, que visa a zerar o déficit no ano que vem.

O anúncio foi realizado na última quinta-feira e, no dia seguinte, a MP foi publicada no Diário Oficial da União (DOU). Embora tenha entrado em vigor na data de sua publicação, o texto só produzirá efeitos a partir de 1.º de abril, data que não poderia ser mais simbólica, já que ninguém acredita que o governo terá sucesso no capítulo mais recente dessa empreitada.

A desoneração da folha de pagamento foi uma política proposta em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff. Substituir a contribuição previdenciária patronal de 20% por um porcentual do faturamento das empresas era uma forma de ajudar alguns setores a se recuperar das consequências da crise mundial de 2008 sem ter de recorrer a demissões. Era para ser um auxílio temporário para enfrentar uma adversidade econômica momentânea, mas o benefício foi recorrentemente renovado desde então.

A desoneração, certamente, não é a solução dos problemas dos setores, mas atenua as dificuldades de muitas empresas e contribui para manter milhões de empregos formais. Na última vez em que a política havia sido prorrogada, em 2021, já se sabia que ela teria validade até o fim deste ano. Logo, se o Executivo estivesse realmente empenhado em apresentar uma alternativa, teria se antecipado às movimentações que ocorriam no Congresso para estendê-la.

O governo, no entanto, não apenas não o fez como foi incapaz de convencer sua própria base a rejeitá-la. Na Câmara, a prorrogação da desoneração até 2027 recebeu 430 votos favoráveis e apenas 17 contrários; no Senado, a aprovação foi simbólica. Ainda assim, a pedido do Ministério da Fazenda, o presidente Lula da Silva vetou o projeto sem ter algo em mente para substituí-lo. Três semanas se passaram sem que o ministro tivesse formalizado a proposta e o veto, por óbvio, foi derrubado.

Insistir nesse embate já seria contraproducente, mas o ministro Haddad decidiu anunciar sua contraproposta em pleno recesso parlamentar, no dia em que o veto foi promulgado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). E tudo isso por meio de uma medida provisória, instrumento rechaçado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e sem diálogo prévio com os setores envolvidos.

Quiçá não falte confiança ao ministro, que angariou apoio suficiente para todas as suas propostas de recuperação de receitas no Congresso e até para a histórica reforma tributária sobre o consumo. Mas talvez Haddad não tenha ponderado os riscos de tentar driblar um veto rejeitado pelo Legislativo sem consultar suas principais lideranças, sem as quais nenhuma dessas medidas teria sido aprovada.

O silêncio de Lira e a reticência que Pacheco demonstrou nas redes sociais dizem muito sobre a forma como o Congresso recebeu a MP. Deputados e senadores se sentiram afrontados e já há quem pregue a devolução da proposta. Mais que o poder do lobby no Legislativo, é o comportamento da economia que explica as razões pelas quais a desoneração foi tantas vezes prorrogada.

Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), entre 2011 e 2020, o País cresceu 0,3%, em média, muito aquém do restante do mundo e ainda menos que o 1,6% médio observado nos anos 1980, na chamada década perdida. Boa parte desse desempenho pífio se deve a um quadro de desequilíbrio fiscal que assumiu caráter permanente nos últimos anos.

Porém, a título de reverter essa situação e zerar o déficit no ano que vem, Haddad recorre, novamente, a medidas para ampliar a arrecadação, reonerando a folha de pagamento sem sequer cogitar tocar nos gastos da União. Por essas e outras razões, a rejeição da medida provisória pelo Legislativo é mais do que esperada. Talvez sirva como desculpa quando o ministro tiver de admitir a necessidade de mudar a meta fiscal em março.

A volta da diplomacia ‘ativa e altiva’

O Estado de S. Paulo

Necessária correção de rumo da diplomacia brasileira, depois da desastrosa gestão Bolsonaro, depende da compreensão de Lula de que interesse nacional deve falar mais alto que ideologia

A guinada de 180 graus na política externa desde o primeiro dia da gestão de Lula da Silva foi significativa para a recuperação da imagem internacional do Brasil, dilapidada persistentemente ao longo dos quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro. Retomou-se a linha natural da diplomacia brasileira, orientada pela Constituição e pela reconhecida experiência do Itamaraty. A travessia de 2023, entretanto, deixou claro que a mudança poderia ter sido mais bem aproveitada não fosse o resgate, pelo governo petista, de convicções ideológicas antediluvianas. É preciso limitar o raio de ação dessa vanguarda do atraso, sob pena de amarrar as relações internacionais do Brasil a propósitos estranhos aos interesses nacionais.

O Brasil, de fato, “voltou”, como apregoa o slogan do governo petista, mas é preciso reconhecer que qualquer coisa seria melhor do que a “diplomacia” sob Bolsonaro, que se empenhou em envergonhar o País no exterior. Sua orgulhosa aversão ao multilateralismo e à agenda ambiental fez do País um pária. A recusa ao aprofundamento do diálogo com vizinhos sul-americanos que não fossem governados por direitistas, sua hostilidade à China e à União Europeia e sua sabujice em relação a Donald Trump quando este presidia os EUA marcaram uma era de isolamento e desvalorização.

Logo que se viu livre do bolsonarismo, o Itamaraty tratou de resgatar sua atuação independente e pragmática. A retomada da diplomacia presidencial por um líder calejado contribuiu para apagar da memória coletiva as vexaminosas atuações de Bolsonaro em fóruns internacionais. Desde 1.º de janeiro de 2023, a vocação multilateral foi reforçada, assim como a prioridade do Brasil ao terreno de sua natural influência geopolítica, a América do Sul. A escolha das frentes do meio ambiente e do combate à fome e à desigualdade social – ambas sabotadas por Bolsonaro – mostrou-se acertada. É nelas que o Brasil tem voz a ser ouvida.

Não à toa, os resultados de políticas públicas de combate ao desmatamento deram consistência às pressões do Brasil por maior ambição nas negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de Dubai, a COP-28. A redução da pobreza e o papel das instituições financeiras internacionais dominarão a agenda do G-20, agora sob o comando do Brasil. A prioridade dada ao multilateralismo foi confirmada pela atuação exemplar do Itamaraty durante sua liderança do Conselho de Segurança das Nações Unidas em outubro.

Mas o presidente é Lula da Silva, cujo ego transcende fronteiras – geográficas e psíquicas. Convencido de que pode acabar com todas as guerras chamando os beligerantes para uma conversa de bar, Lula é a face da diplomacia megalomaníaca que o lulopetismo qualifica de “ativa e altiva”, que faz o Brasil se intrometer em assuntos a respeito dos quais não tem nem vocação nem poder para exercer qualquer influência.

Por outro lado, para os temas nos quais o Brasil tem o dever de atuar, como a defesa dos direitos humanos e da democracia na América do Sul, a diplomacia “ativa e altiva” do lulopetismo se torna tímida e hesitante – quando não francamente favorável aos governantes autoritários que, não por acaso, são tratados como “companheiros” por Lula.

Ao defender o tirano venezuelano Nicolás Maduro, por exemplo, Lula fere a imagem do Brasil, o interesse nacional e sua própria credibilidade, sem que haja nenhum ganho visível para o País. Ao contrário: o Brasil se desqualifica como eventual mediador em caso de aprofundamento da crise na Venezuela, uma vez que já escolheu um dos lados do conflito.

A antidiplomacia de Bolsonaro não pode ser simplesmente substituída pela diplomacia da conversa de boteco do lulopetismo. É evidente que o ar do Itamaraty ficou mais leve depois que o bolsonarismo foi derrotado, mas é também evidente que só isso não basta: é preciso que a política externa brasileira volte a ser determinada pelo interesse nacional, sem estar subordinada aos compromissos ideológicos dos petistas com tiranos de esquerda nem, muito menos, à soberba de quem acha que pode ganhar o Nobel da Paz só no gogó.

Europa aflita com imigrantes

O Estado de S. Paulo

União Europeia aperfeiçoa regras para imigração no momento em que o tema dá votos à extrema direita

A Europa vive um paradoxo. De um lado, sua população envelhece e precisa de trabalhadores. De outro, as imigrações desordenadas irritam o eleitorado, facilitando a partidos de extrema direita disseminar o pânico civilizacional e capitalizar votos.

Esses partidos vêm deslocando legendas conservadoras como a principal força da direita na França, Itália, Suécia, Alemanha e Suíça, e podem inundar o Parlamento Europeu em 2024. “Se não limitarmos o número de chegadas até junho do ano que vem”, disse o alemão Manfred Weber, líder do partido de centro-direita Povo Europeu, “as eleições europeias serão provavelmente uma votação histórica para o futuro da Europa”, com a ascensão de extremistas à esquerda e à direita.

Os dilemas são em parte reais. Os europeus precisam de trabalhadores, mas estão aflitos com atritos culturais, especialmente com muçulmanos. Os europeus veem a Europa como um espaço de tolerância, liberdade e respeito aos direitos humanos, mas sentem que seu sistema de acolhimento de refugiados está exaurido e provoca divisões. As ondas migratórias chegam, sobretudo, do norte da África à Itália e à Grécia. Seu tratamento rigoroso em relação aos barcos do Mediterrâneo gera reprovações dos países do norte. Ao mesmo tempo, os países do sul estão aliviando o trânsito dos imigrantes pelas fronteiras intraeuropeias, levando muitos países a impor restrições na zona de livre circulação.

Mas, em certa medida, os dilemas são só aparentes. Quanto mais rápido a Europa organizar seus esquemas de imigração para trabalhadores, mais rápido preencherá suas lacunas econômicas e reduzirá o mercado dos traficantes de pessoas. Quanto mais rápido organizar seus sistemas de acolhimento de exilados, mais fácil será acolher os que têm direito e prover um retorno seguro aos que não têm. Em resumo, quanto mais robusto e racional for o sistema de imigração legal, menor será a pressão da imigração ilegal. Em tese, é uma obviedade. Na prática, isso tem sido dificultado pela intransigência dos partidos à direita e à esquerda.

Mas em 2023 passos foram dados. Após sete anos, a União Europeia (UE) fechou um pacto reformando as regras de asilo político. As responsabilidades serão mais bem distribuídas. Os países terão a opção entre receber uma cota de exilados ou pagar aos que recebem. Isso aliviará a pressão sobre os países do sul e agilizará a aceitação, mas também a recusa, dos pedidos de exílio. A França aprovou medidas para facilitar vistos de trabalho. Em contrapartida, a lei facilita a deportação de imigrantes ilegais e restringe seu acesso a benefícios sociais.

São acordos que não agradam plenamente nem à direita nem à esquerda. Mas ao menos são acordos. Podem ser aprimorados com o tempo. O fato é que a falta de consensos no centro, por mais imperfeitos que sejam, só fortalece os extremos, seja o que quer bloquear completamente a imigração, seja o que quer abrir as portas indiscriminadamente, prejudicando uma combinação equilibrada e generosa de políticas de acolhimento tanto de trabalhadores e quanto de refugiados.

2023, feliz ano velho

Correio Braziliense

O país voltou à normalidade institucional, a economia reagiu positivamente e nosso lugar no mundo foi reocupado. O horizonte justifica nosso otimismo em relação ao ano-novo

Para um ano que começou tenebroso, devido aos acontecimentos de 8 de janeiro, quando houve uma tentativa de destituir o recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegamos a um final feliz em 2023. O saldo do primeiro ano do atual governo é positivo, melhor do que as expectativas pessimistas de janeiro. O país voltou à normalidade institucional, a economia reagiu positivamente e nosso lugar no mundo foi reocupado. O horizonte justifica nosso otimismo em relação ao ano-novo.

A inflação voltou a níveis administráveis, embora possa ser ainda menor. O desemprego foi reduzido e o país cresceu acima do que era esperado pelos analistas, para sorte dos agentes econômicos e da população. A política fiscal ganhou mais racionalidade. Com a Reforma Tributária, espera-se um ganho de produtividade e inovação capaz de alavancar a modernização da economia brasileira.

Nesse aspecto, a grande chave do futuro é a economia verde. Essa mudança de paradigma abre uma grande janela de oportunidades para o Brasil, que se prepara para receber a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), a ser realizada em Belém, no Pará, em novembro de 2025. Espera-se um fluxo de mais de 40 mil visitantes durante a Conferência, dos quais sete mil serão membros das equipes da ONU e delegações de países-membros.

O mundo olha para a questão ambiental no Brasil, que mudou completamente de eixo neste ano que finda. Passou a ter mais atenção governamental, estimulou investidores e pôs em pauta não somente a transição energética, mas o surgimento de uma nova economia, que vai do agronegócio a setores tecnológicos. Não se trata de produzir tudo, mas de fazer melhor.

Entretanto, nossos velhos problemas também mostraram a sua face, entre os quais a má qualidade do ensino, a deterioração dos centros urbanos e a violência, que retroalimentam nossa secular iniquidade social. Como aconteceu em relação à política externa e à questão ambiental, a saída para esses problemas é política. Depende das prioridades dos governantes, em todos os níveis.

Executivo, Legislativo e Judiciário precisam de uma agenda comum, que harmonize suas ações e supere desequilíbrios que estão evidentes. O sistema de pesos e contrapesos existe para evitar crises institucionais e não para provocá-las. Nessa agenda, uma palavra-chave encontra eco na grande maioria da sociedade: austeridade. Mais critério e foco na qualidade dos gastos públicos de parte de todos os poderes.

Outra palavra-chave é equidade. Precisamos respeitar as diferenças de gênero, até para superar tenebrosos indicadores de violência; combater abissais desigualdades sociais, com aumento continuado da renda das famílias na linha de pobreza; e promover políticas públicas de saúde, educação e inclusão social, principalmente a igualdade de oportunidades para nossos jovens, adolescentes e crianças, sobretudos negros e mulheres.

Por fim, a integração. Há que se ter uma visão estratégica capaz de articular o meio ambiente e o agronegócio para criar novas cadeias produtivas e uma nova indústria. E incorporar a grande massa de trabalhadora e empreendedores ao novo ciclo que se abre, com investimentos de infraestrutura, educação de qualidade, ciência e tecnologia, habitação, mobilidade urbana e segurança pública. O ano que se encerra semeou essa esperança.

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