O Globo
É um avanço de várias casas a prisão e
condenação dos golpistas bolsonaristas
Numa escala de 1 a 10, ainda não chegaram aos
presídios os peixes graúdos do Golpe de 8 de Janeiro. Estamos no 3, no momento.
As celas reúnem alguns bagres desatentos, outras tilápias distraídas e um ou
outro dourado de olhos estalados. Um ano depois da patriotada, as investigações
por enquanto não cercaram o pacu estrelado ou o lambari endinheirado. A piaba
da barra permanece em suspensão.
Pode soar frustrante, mas, no Brasil da
contemporização e do perdão obsequioso, é um avanço de várias casas a prisão e
condenação dos golpistas bolsonaristas. Até então, as tentativas de subversão
criminosa vindas da direita — civil ou militar — logo recebiam um tapinha nas
costas e alguma anistia em nome da nefasta e covarde concórdia. Como prêmio, e
porque ninguém é de ferro, vinha uma aposentadoria especial.
A patuscada de 1935, de cepa de esquerda, resultou na prisão dos líderes, a começar por Luiz Carlos Prestes. Mas tantos documentos depois, discute-se se a Intentona Comunista não surgiu de um ardil de Getúlio Vargas para golpear a democracia em 1937, com a implantação do Estado Novo — e a censura e as mortes que se seguiram em seu rastro de desonra.
A prisão de centenas de golpistas no 8 de
Janeiro de 2023, e a condenação de quase uma dezena deles até o momento, com
vários outros ainda em espera no corredor, define outro Brasil, talvez
encerrando ali — aqui meu inesperado excesso de otimismo — nossa República
bananeira. Típico de um romance surreal latino-americano, a desmerecer nossa
autoestima, o golpe vinha incensado por um ex-militar de muito baixa patente —
no paralelo civil, equivalente ao ensino fundamental inconcluso —, nem sequer
um general; só que o discurso, em tons puídos (Deus, pátria e família), bateu
num país um pouco mais moderno, diferente da terrinha de 1964, esboroada pela
inflação e amedrontada pelo comunismo da Guerra Fria. Na época, os brasileiros,
com ajuda da propaganda americana, sabiam identificar um comunista; hoje, não.
Os bolsonaristas tiveram de conceder que Flávio Dino possa
ser um comunista cristão! E Lula, convenhamos, nunca foi de esquerda.
Antes de tudo, a catilinária sem ortografia
do bolsonarismo, com seu apelo à liberação das armas e à rejeição ao aborto,
mais sua homofobia e misoginia também criminosas, chamou às manchetes aquilo
que a Zona Sul coloca sob o tapete e o que Oswald de Andrade, na década de
1920, classificou como “um país dando adeus” — o Brasil do samba é conservador,
onde até os ex-comunistas são cristãos. Conservador e violento, como os bons
religiosos.
Mas onde a esquerda identitária, aquela que
estende a corda para impulsionar a polarização, permanece em estado letal, à
semelhança da extrema direita. Haja vista a contaminação do Censo 2022: embora
cerca de 10% se declarem pretos, outros 45% se identificam como pardos (nossa
miscigenação!) — resultado do baticum ideológico e da matemática néscia: o
Brasil é um país preto. Como diz Nélida Piñon em seu derradeiro e belíssimo “Os
rostos que eu tenho” (de onde tiro o título desta coluna), somos “sobretudo mestiços”.
E injustos: entre nós, a pobreza perdeu seu status político para a invenção da
raça, um conceito de direita.
São os dois Brasis — da patriotada e dos
identitários; da extrema direita e da esquerda oportunista —, cada qual a seu
modo, patrimonialistas. Além de autoritários, ao misturar o Estado com a
sociedade, quando se usa o aparato estatal para subjugar as liberdades
individuais em nome de uma fé e de uma religião.
Ainda assim, mesmo com dezenas de patriotas
presos e condenados, os bolsonaristas, como a própria esquerda identitária, não
compreenderam o que significou o 8 de Janeiro. A tal polarização é um grito, a
ser ouvido, de um arcaísmo renitente que opõe o velho e o novo no Brasil, desde
sempre, desde o Império, desde os gabinetes conservadores aos liberais.
Foi uma tentativa de golpe, sim, dentro dos
velhos moldes, do tipo quartelada fora de moda; mas por que deu errado? Por que
os golpistas não foram amparados pelos militares bolsonaristas? Por que durante
mais de uma hora o Brasil achou que aquela turba ignara poderia ditar nosso
futuro? Não houve eco ao Deus, pátria e família. Em resposta, veio um urro. O
que os mal-ajambrados propunham fora derrotado nas urnas, mesmo sob o peso do
uso da máquina governamental. O erro do perdão aos torturadores do regime militar,
em nome da afamada comunhão, enfim, produziu um país disposto a buscar futuro.
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