Brasil deve regular Cannabis medicinal com sensatez
O Globo
Não pode haver um ‘liberou geral’, mas
questão de saúde pública não deveria ficar a cargo da Justiça
No ano que passou, 430 mil pacientes usaram a
Cannabis medicinal para tratar casos de doenças como epilepsia, dores crônicas
ou transtornos neuropsiquiátricos. Houve alta de 130% em relação a 2022. A
maior parte dos produtos é importada. Somente no primeiro trimestre, o
Ministério da Saúde gastou R$ 768 mil para atender a ordens judiciais e
fornecê-los aos pacientes, quase o quíntuplo do gasto de 2021. Até outubro, a
Anvisa já emitira 114.782 autorizações de importação, 73,4% a mais que no mesmo
período de 2022. A maior despesa tem cabido aos estados: seis unidades da
Federação gastaram até outubro R$ 39,1 milhões para atender às ordens da
Justiça (R$ 25,6 milhões só em São Paulo).
A corrida ao Judiciário acontece porque a atual legislação permite a importação, mas não o cultivo da Cannabis para fins medicinais. O custo é alto — alguns produtos importados podem chegar a R$ 4 mil — a ponto de impedir muitas famílias de usar o tratamento. As estratégias não garantem sucesso. Em geral, os médicos precisam detalhar os motivos para uso do produto e atestar que já tentaram outros tratamentos. Muitos pacientes procuram a Justiça também em busca de autorização para cultivar a planta em casa. Mas isso ainda é proibido no Brasil.
As dificuldades, aliadas à demanda crescente,
têm levado alguns estados a aprovar leis para fornecer os produtos no SUS. São
Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal já dispõem de legislação sobre o
assunto. Sem dúvida é um avanço, mas a questão não se encerra aí. Às vezes,
existe a lei, mas não a regulamentação. Na prática, isso acaba privando os
pacientes. Não é uma questão simples. Faltam diagnósticos sobre as doenças para
as quais o tratamento é recomendado e padronização dos produtos. Muitos não têm
indicação clínica específica e não foram submetidos a testes rigorosos, daí
serem tratados pela Anvisa como “produtos de Cannabis”, e não como remédios.
É verdade que, em muitos casos, ainda faltam
evidências científicas que comprovem a eficácia do tratamento com esses
produtos à base de Cannabis. Mas não se pode ignorar que eles já são usados por
milhares de brasileiros. Dezenas de associações reúnem pacientes com o objetivo
de obtê-los. O plantio controlado da Cannabis, que baratearia a produção e
tornaria o tratamento mais acessível, ainda depende de ordens judiciais
frágeis, sujeitas aos humores das diversas instâncias e desvãos do Judiciário
brasileiro.
A Justiça não é a instituição adequada para regular uma questão de saúde. Ainda que o simples debate cause desconforto em grupos conservadores, a questão precisa ser encarada. Ignorar demandas legítimas da sociedade por motivação ideológica, ignorância ou preconceito não costuma ser o melhor caminho para resolvê-las, pois elas não desaparecerão. É hora, portanto, de tratar o tema com seriedade e sem preconceito. Sem regulamentação ou com normas frágeis, impera a desorientação e a insegurança nos tratamentos. Evidentemente, não é o caso de um “liberou geral”, mas de uma regulação cautelosa e sensata. Fechar os olhos é a pior solução.
Com fim do sonho Ancelotti, a CBF deveria
definir logo técnico da seleção
O Globo
Preparação para a Copa de 2026 precisa
começar se Brasil quiser manter viva a chance do hexa
Para a seleção brasileira de futebol, o
Ano-Novo começa num clima de incerteza. Considerando as confusões engendradas
pelos cartolas, nem a própria CBF arrisca dizer o que será de 2024. Muito menos
quem comandará nossos talentosos jogadores rumo à Copa de 2026, que pela
primeira vez será disputada em três sedes (Estados Unidos, Canadá e México).
Em meio a um jejum de títulos que dura mais
de duas décadas — a última taça foi erguida em 2002, por Cafu, Ronaldo
Fenômeno, Ronaldinho e companhia —, a torcida brasileira ficou empolgada quando
a CBF informou ter firmado um acordo verbal com o italiano Carlo Ancelotti,
técnico do estrelado Real Madrid, para que ele assumisse a seleção a partir da
Copa América, em 2024. Na semana passada, porém, Ancelotti informou ter
renovado contrato com o clube espanhol até junho de 2026.
A frustração não surpreende. Sempre que
questionado sobre o assunto, Ancelotti driblava os repórteres dizendo que eram
apenas rumores. O fiador de sua vinda era o ex-presidente da CBF Ednaldo
Rodrigues, afastado do cargo por decisão do Tribunal de Justiça do Rio. Os
magistrados consideraram nulo o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado
entre CBF e Ministério Público que permitiu sua eleição. Rodrigues sempre disse
que o acordo estava encaminhado. Sem contar com ele no comando, Ancelotti tomou
a decisão previsível e ficou onde estava.
Certo mesmo é que a seleção tem hoje apenas
um técnico interino, Fernando Diniz. Celebrado nos meios esportivos, Diniz faz
um trabalho notável no Fluminense, que conquistou a Taça Libertadores da
América e perdeu a final do Mundial de Clubes para o Manchester City. Mas não
tem colhido bons resultados na seleção. Nas eliminatórias da Copa do Mundo, vem
de um empate com a Venezuela e de derrotas seguidas para Uruguai, Colômbia e
Argentina. Na classificação geral, o Brasil amarga um inusitado sexto lugar. Nada
que ameace o passaporte para 2026, mas não se pode dar chance ao azar.
Ainda que no final tenha sido frustrada, a
procura pelo vitorioso Ancelotti teve o mérito de abrir o leque para
estrangeiros no comando da seleção, que não deveria ser monopólio dos
brasileiros. Aqui ou no exterior, não faltam profissionais gabaritados para a
missão de liderar a única seleção pentacampeã. O Mundial se aproxima, e a
preparação precisa começar logo. Seria bom que a CBF, mesmo em período de
turbulência, deixasse de lado apostas incertas e definisse logo quem será o
técnico. Improviso, despreparo e hesitação só tornarão mais difícil o sonho do
hexa.
Partidos custosos
Folha de S. Paulo
Número de siglas cai, o que é bom, mas
intensifica-se o avanço sobre o erário
Passam longe de definidas as candidaturas
para as eleições municipais que ocorrerão neste incipiente 2024, mas uma coisa
é certa: se depender do Congresso Nacional, a farra com o recurso público nas
campanhas está garantida.
Deputados e senadores embutiram no Orçamento
do ano que começa a previsão de nada menos que R$ 5 bilhões para o fundo
eleitoral, um dinheiro que sai do bolso do contribuinte na forma de impostos e,
numa simples canetada, cai na conta dos partidos políticos.
A pândega ainda poderá ser vetada pelo
presidente Lula (PT), mas nada indica que o fará, considerando-se não só a
instabilidade de sua base no Parlamento mas também o apoio ecumênico à
gastança. A votação do fundo eleitoral contou com o beneplácito de todas as
siglas, do PT ao PL —passando, obviamente, pelas do centrão.
Verdade que o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), até se manifestou contra a iniciativa. "As pessoas não
compreenderão por que, em 2020, em uma mesma eleição municipal, foram R$ 2
bilhões", afirmou. Se corrigida pela inflação, a cifra estaria agora em
torno de R$ 2,5 bilhões.
Mas foi em vão. Os parlamentares nem se dão
ao trabalho de explicar o aumento exorbitante.
O aspecto positivo das eleições recentes têm
sido a tendência de redução do número de partidos, graças à adoção de uma
cláusula de desempenho que barra o acesso a recursos públicos de siglas que não
atingem votações mínimas.
Esse expediente contribuiu, por exemplo, para
que a quantidade de legendas representadas na Câmara, depois de atingir um
recorde de 30, hoje seja de 16 —aí incluídas as federações. O processo precisa
continuar, de modo a reduzir os custos da formação de coalizões.
A distorção que persiste, entretanto, é a
corrida aos fundos públicos, que confere poder excessivo às burocracias
partidárias.
São os líderes, afinal, que decidirão sobre a
distribuição dos recursos —e todo político sabe que o financiamento de campanha
é decisivo para sua chance de sucesso.
Adicione-se o recorde de R$ 53 bilhões em
emendas parlamentares a serem gastos no primeiro semestre e pode-se imaginar o
tamanho da distorção que essas cifras provocarão nas disputas municipais.
Pior: seja no caso do fundo eleitoral, seja
no das emendas, o destino da dinheirama se define com pouco sentido democrático
e ainda menos racionalidade administrativa, em benefício não do eleitor nem das
políticas públicas, e sim dos deputados e senadores que comandam a máquina.
Ao se opor ao aumento do fundo eleitoral, o
presidente do Senado afirmou que a medida ensejaria discussões sobre a volta
das doações por empresas. Esse é, de fato, um debate a ser considerado, desde
que contemple limites nominais e regras de transparência.
Verão impróprio
Folha de S. Paulo
Balneabilidade das praias expõe descaso com
saneamento; novo marco é esperança
A praia do
Leblon não ostenta só a vista do morro Dois Irmãos, uma das
paisagens mais admiradas do Rio de Janeiro. Com águas do mar de qualidade ruim
nos três pontos de medição, ela oferece ainda uma síntese dos atrasos que
marcam o saneamento básico
no país.
O dado consta do levantamento realizado
há oito anos por esta Folha, com dados de governos locais, e publicado a
cada verão.
Ao todo, são 1.350 pontos de monitoramento em todo o litoral brasileiro.
Das 58 praias avaliadas na chamada Cidade
Maravilhosa, apenas 4 obtiveram classificação anual boa.
Outras 17 caíram na categoria das regulares,
e as demais 35 (2 ficaram sem medição), para surpresa de poucos, ruins ou
péssimas.
A sempre prometida despoluição da baía de
Guanabara vai atrasar dois anos. Agora está marcada para 2028. Uma miragem que
sempre se distancia (como a limpeza do rio Tietê na capital paulista).
A condição praiana vexatória está à vista de
todos, como nas restantes dez capitais estaduais situadas no litoral. Nos 337
locais de medição de balneabilidade dessas cidades, apenas 47 (14%) indicaram
qualidade boa.
Considerando todas as praias monitoradas no
Brasil, o indicador é um pouco melhor: 32% aceitáveis. Os outros dois terços se
dividem entre regulares, ruins e péssimas.
Não há espanto, como deveria haver, porque a
população se acostumou com a incúria do poder público no setor de coleta e
tratamento de esgotos. Percebe-se algo de errado quando eleitos e eleitores
ignoram indicador tão óbvio de eficiência governamental.
Nesse quesito, estamos todos reprovados. Em
pleno século 21, só 55,8% da
população conta com rede de esgotamento sanitário, segundo o
Instituto Trata Brasil. E não mais de 51,2% dos dejetos gerados recebem o
tratamento adequado.
O panorama melhora, mas de modo sobremaneira
lento. Em três décadas (1989-2017), a parcela de municípios com rede de coleta
de esgotos foi de 47,3% a 60,3%. Parece difícil a meta de universalizar
o saneamento no ano 2033.
As esperanças residem no novo marco do setor, que amplia as possibilidades de participação privada e atração de investimentos. O passado ensina que só a gestão estatal do saneamento foi incapaz de cumprir a missão civilizatória.
É hora de encerrar inquéritos contra
golpistas
O Estado de S. Paulo
Com quase cinco anos, inquérito do STF sobre
‘fake news’ precisa ter fim, bem como demais investigações sobre golpistas;
circunstância atual não justifica mais essa atuação excepcional
Em março deste ano, completará cinco anos o
Inquérito (Inq) 4.781/DF aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar
fake news e ameaças veiculadas na internet contra a Corte e seus ministros.
Desde então, outras investigações criminais foram instauradas no âmbito da
Corte constitucional, como o Inq 4.874/DF que, desde julho de 2021, investiga a
atuação de milícias digitais contra o Estado Democrático de Direito.
Ainda que possuam objetos de investigação
diferentes, esses inquéritos têm fortes semelhanças entre si. Sigilosos e sob a
mesma relatoria do ministro Alexandre de Moraes, todos eles foram de grande
utilidade na defesa das instituições democráticas. Em momentos dramáticos, em
que a Procuradoria-Geral da República (PGR) dedicou-se à omissão – Augusto Aras
não via nada de anormal no País –, essas investigações permitiram que o STF
atuasse pronta e diligentemente na proteção da democracia e da Constituição,
ante os insistentes ataques contra as eleições e a separação de Poderes.
Junto a seus inegáveis méritos, esses
inquéritos também geraram pontos menos louváveis, com interpretações
extravagantes sobre as competências da Corte e os limites dos próprios
procedimentos investigativos. Por exemplo, no primeiro semestre do ano passado,
eles foram usados para remover da internet conteúdo sobre projeto de lei em
tramitação no Congresso (o PL das Fake News) e para investigar falsificação de
cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Nas duas situações, houve
evidente uso irregular dos inquéritos do Supremo, com o descumprimento de
regras básicas da legislação brasileira.
Elaborar um diagnóstico preciso a respeito
desse quadro de luzes e sombras envolvendo a atuação do STF é tarefa ainda a
ser realizada. Até mesmo porque os inquéritos são todavia sigilosos. Não se
conhece toda a extensão dos ataques, tampouco o alcance das medidas tomadas
pela Corte. De toda forma, há dois pontos indiscutíveis: as circunstâncias do
País são outras – aquelas ameaças ao regime democrático já não existem mais – e
os inquéritos criminais têm de ter prazo para acabar – não podem permanecer indefinidamente
no tempo.
Isso tudo conduz a uma cristalina e pacífica
conclusão: é tempo de os inquéritos criminais no STF relativos a ataques
antidemocráticos serem encerrados, de acordo com o que determina a lei. Havendo
indícios de autoria e materialidade delitiva, que se proceda ao indiciamento
dos investigados, com o encaminhamento dos casos ao Ministério Público. Nos
casos em que não houver os indícios mínimos, que se proceda ao arquivamento.
O Supremo cumpre seu papel em defesa da
Constituição não apenas quando abre um inquérito para apurar atos
antidemocráticos, mas também quando encerra essa investigação, dando o devido
encaminhamento. Desde março de 2019, este jornal sempre reconheceu a existência
de fundamento jurídico que justificasse a competência do STF nessas
investigações. No entanto, não existe fundamento jurídico para tornar esses
inquéritos perpétuos, menos ainda para, valendo-se deles, concentrar de forma
permanente na Corte a competência de todos os casos relativos a crimes contra a
democracia.
Além da questão jurídica – inquéritos devem
respeitar os trâmites e limites legais –, o encerramento dessas investigações
tem também uma evidente dimensão social e política, que o STF não pode ignorar.
Não faz bem ao País – nem ao Supremo – um permanente e extravagante
protagonismo da Corte constitucional. Se houve, nos últimos anos,
circunstâncias excepcionais – que felizmente o STF soube detectar a tempo –, é
preciso reconhecer quando elas já não se fazem presentes. Para piorar, esses
inquéritos promovem um protagonismo concentrado num único ministro, Alexandre
de Moraes, o que distorce a percepção sobre o Judiciário, além das evidentes
fragilidades para a imagem da Corte.
Medida processualmente correta, encerrar os
inquéritos é um gesto que fortalece a autoridade do STF e distensiona o País.
As águas devem voltar ao seu leito normal.
Um avanço pela metade
O Estado de S. Paulo
A exclusão de agricultura e pecuária reduziu
a abrangência do mercado regulado de carbono no Brasil, mas não diminuiu a
importância da medida
A criação do mercado de carbono, aprovada
pela Câmara, foi um avanço pela metade ao referendar a exclusão de agricultura
e pecuária, como havia determinado o Senado. Mesmo assim, foi um dos principais
saldos positivos do Legislativo em 2023 por destravar um projeto fundamental
para que o País cumpra as metas de redução da emissão de gases causadores do
efeito estufa assumidas no Acordo de Paris, em 2015.
Sem a concessão à agropecuária, certamente a
discussão, que se arrastava lentamente, não teria sido concluída, com a
aprovação do PL 412 por 229 a 103 votos na Câmara. Afinal, com 324 dos 513
deputados federais e 50 dos 81 senadores, a Frente Parlamentar Agropecuária é a
mais numerosa do Congresso.
Portanto, foi a solução possível. E não foi
pouca coisa.
O setor agropecuário continuará participando
do mercado voluntário de carbono, que consiste, por exemplo, na compra e venda
de créditos de carbono atrelados à redução de desmatamento ou a
reflorestamento, mas sem a necessidade de seguir as obrigações impostas na
legislação. O argumento dos produtores é de que não há como medir ou controlar
segmentos importantes da atividade.
O argumento não é despropositado, a despeito
das críticas de ambientalistas. De fato, uma pesquisa do Centro de Estudos
Avançados em Economia Aplicada (Cepea) já apontou como externalidade negativa
da pecuária a participação do gado em mais de 40% das emissões de gases do
efeito estufa (GEE). No mundo, as estimativas são de que o rebanho bovino, por
causa da grande quantidade de animais, emita em torno de 9% do total desses
gases. A particularidade do Brasil é que aqui agricultura e pecuária estão
entre as principais atividades econômicas.
O acordo que levou à aprovação, em outubro do
ano passado, por unanimidade, do projeto na Comissão de Meio Ambiente do
Senado, sem a necessidade de submetê-lo ao plenário da Casa, foi o meio
encontrado para fazer avançar no País a agenda ambiental. Na Câmara, o deputado
Aliel Machado (PV) tentou reinserir o setor agro entre os agentes do mercado
regulado, mas acabou convencido de que o melhor caminho era optar pela evolução
possível.
Com a criação do Sistema Brasileiro de
Comércio de Emissões de Gases do Efeito Estufa o Brasil ingressará – com
atraso, é verdade – num mercado que reúne, de acordo com dados do Banco
Mundial, países como Estados Unidos, China, Japão, México e Canadá e que
rendeu, em 2022, R$ 56 bilhões de receita. De acordo com o banco, o Brasil tem
potencial para gerar receitas de R$ 128 bilhões em dez anos. Mas a principal
vantagem será o incentivo à adoção de modelos mais sustentáveis de negócios,
uma aposta certa, com ou sem o agronegócio.
O Brasil tem o privilégio de contar com
parcela significativa de geração de energia renovável (hidrelétrica, eólica,
solar). De acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) 47,4% da
energia produzida é limpa, enquanto a média mundial está em torno de 15%. A
instituição de um mercado que servirá para conter o aumento de emissões, por
meio de compensações com a aquisição de créditos entre os setores e com o
governo, tem potencial para empurrar o País à vanguarda ambiental, apesar de
todas as concessões.
O mercado regulado é apenas um dos
instrumentos da campanha que move o mundo na busca pela redução dos efeitos
climáticos nocivos dos gases jogados na atmosfera – efeitos cada vez mais
assustadoramente presentes, como as ondas de calor e o derretimento das calotas
polares, fenômenos que colocam em risco a própria existência no planeta.
Fixar um preço para o carbono dá o sinal
econômico para que os emissores transformem suas atividades para reduzir a
poluição. Ou paguem por isso. Estarão sujeitos à compra ou ao pagamento de
pesadas multas aqueles que emitirem acima de 25 mil toneladas de gás carbônico
por ano, em torno de 5 mil empresas brasileiras. Mas apenas no fim da década a
regulação será efetiva. E aí virá a parte mais importante e também mais difícil
de concretizar no Brasil: a fiscalização.
Conteúdo local, de novo
O Estado de S. Paulo
Governo aumenta ao acaso índice de
nacionalização em equipamentos do setor de petróleo
Em reunião extraordinária em dezembro, o
Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) decidiu reativar uma estratégia
das três gestões anteriores do PT e elevou os porcentuais de conteúdo local
para fornecimento de equipamentos para exploração e produção de petróleo. A
exigência passou de 18% para 30% na fase de exploração, quando estão sendo
pesquisadas as reservas, e de 25% para 30% no desenvolvimento da produção,
etapa seguinte à descoberta.
Numa demonstração de que o revigoramento do
conteúdo local é uma decisão política prioritária do governo, Lula da Silva
participou pessoalmente da reunião, acompanhado dos 16 ministros que passaram a
compor o CNPE (até o ano passado, eram dez). Assim, o presidente reeditou uma
medida que no passado, cercada de muitas críticas, exagerou na dose e não
conseguiu entregar os efeitos esperados.
Em seu primeiro mandato, Lula fixou índices
entre 33,5% e 42,25%, respectivamente para exploração e produção, exigência que
rapidamente foi ampliada para porcentuais entre 80% e 85%. Significa dizer que
quase todo o material utilizado para explorar e extrair petróleo nos campos
marítimos (offshore) deveria ter fabricação nacional.
Em teoria, uma opção de política industrial –
verticalizada, é verdade, por abranger apenas fornecedores de um único setor.
Na prática, uma medida fora da realidade por vários motivos, a começar pela
complexidade da atividade petrolífera, que exige um nível de tecnologia e
capacitação para a qual a indústria nacional não estava preparada.
Quando o País ingressou em outro patamar
exploratório, a partir da década de 2010, pouco depois da descoberta do
pré-sal, a situação ficou ainda mais complicada, mas o governo ignorou e seguiu
com o que imaginava que seria o seu trampolim para mergulhar na competição
internacional. Era excesso de confiança ou desconhecimento esperar que, num
estalar de dedos, a indústria brasileira escalasse essa produtividade. O saldo
real foi uma frustração de expectativas, em termos de qualidade das entregas,
prazos e preços.
Com o pré-sal, os trabalhos exploratórios no
mar, antes em profundidades em torno de 3 mil metros, desceram a mais de 6 mil
metros, o que exigiu aperfeiçoamento tecnológico da Petrobras. Os investimentos
da empresa, que em 2006 já ultrapassavam US$ 11 bilhões, pularam para US$ 40
bilhões. Era o momento de o governo, já sob a Presidência de Dilma Rousseff,
rever essa política tão deslocada da realidade. Bastava retroceder um pouco
para tentar avançar mais adiante. Não aconteceu, e a Petrobras ficou refém do conteúdo
local.
Exceções foram necessárias para cobrir as lacunas. E foram tantas que a capacidade de fiscalização da regra, já deficiente, ficou absolutamente comprometida. Agora, o governo retoma a mesma política, sem sequer discutir com os agentes envolvidos e sem que se tenha certeza de que a indústria terá capacidade para ampliar sua competitividade em um mercado altamente globalizado. É uma decisão com ares de autoritarismo e açodamento, típica de quem não aprende com os erros.
2024, um ano de desafios
Correio Braziliense
Pautas importantes já estão previstas, como a
segunda etapa da reforma tributária, que pretende alterar as alíquotas do
Imposto de Renda
É inevitável que, após o descanso das festas
e os tradicionais balanços feitos nessa época, o primeiro dia do ano seja o
momento de vislumbrar o que se reserva para 2024. A constatação é que os
próximos 12 meses serão de desafios sérios e intensos, tanto no Brasil quanto
no mundo. Nos assuntos domésticos, três questões deverão mobilizar os esforços
e as atenções. O principal: é ano de eleições municipais. Além da preocupação
natural que a troca de comando das 5.568 prefeituras brasileiras traz, a polarização
que a sociedade brasileira mergulhou nos últimos anos ainda segue extremamente
acirrada. A transposição dessa tensão para o plano regional pode levar a uma
pulverização de conflitos, com a agressividade exacerbada pelas rivalidades
locais, trazendo consequências graves.
Além disso, a relação entre o governo federal
e o Congresso deverá continuar de modo ambíguo, com estranhamentos de ambos os
lados. O atrito mais recente — o envio de uma medida provisória para acabar com
a desoneração da folha de pagamentos, a pedido do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad — deixou claro como será o ano. O texto foi mal recebido por deputados e
senadores, que devem fazer jogo duro na negociação com o Executivo. O problema
é que pautas importantes estão previstas, como a segunda etapa da reforma
tributária, que pretende alterar as alíquotas do Imposto de Renda — tema de
interesse de toda a população.
Por fim, a saúde deverá se impor como um
tópico de atenção. O país deve enfrentar, nos próximos meses, um agravamento
nos números da dengue. Em 2023, o Brasil bateu o recorde de mortes pela doença,
com 1.079 óbitos confirmados pelo Ministério da Saúde, e poderá ter, em 2024,
até 5 milhões de casos de dengue, segundo a secretária nacional de Vigilância
em Saúde, Ethel Maciel. A incorporação de uma vacina contra a dengue no
calendário, para iniciar a aplicação a partir de fevereiro, traz certo alento,
assim como o repasse de R$ 256 milhões para secretarias de saúde municipais e
estaduais para o combate à doença, mas são ações ainda incipientes diante do
tamanho do desafio.
Em termos globais, as guerras em andamento
ainda vão causar apreensão e tensão, principalmente porque parecem longe de um
desfecho. A invasão da Ucrânia pela Rússia, que prometia ser uma ação rápida de
Moscou, está entrando em seu terceiro ano, com o temor de uma escalada que
arraste os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o
conflito e o uso de armas nucleares, crescendo a cada dia. Enquanto isso, o
confronto entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, continua desafiando aqueles
que buscam uma saída diplomática. Um cessar-fogo parece distante e, enquanto
isso, a população civil sofre as graves consequências da guerra.
Além disso, o mundo deverá continuar lidando
com transtornos ambientais cada vez mais severos, causados pela mudança
climática. Enchentes provocadas por tempestades torrenciais deverão forçar
centenas de milhares de pessoas a sair de suas casas. As ondas de calor
provavelmente vão se intensificar, e a produção de alimentos enfrentará
dificuldades, o que poderá causar uma elevação global nos preços das comidas.
Os mais pobres — como sempre — serão os mais penalizados.
Por fim, em novembro, os Estados Unidos vão
às urnas para escolher o seu líder. Tudo caminha para uma disputa entre o atual
presidente, o democrata Joe Biden, e o ex-presidente, Donald Trump. O
republicano ainda enfrenta acusações de ter facilitado a invasão do Capitólio,
em Washington, em janeiro de 2021, o que pode acabar levando a uma retirada de
sua candidatura pela Suprema Corte, e a uma batalha jurídica de resultado ainda
incerto.
Resta, portanto, saber como o Brasil e o
mundo vão se portar diante de todos os desafios que 2024 apresenta. Que não
falte sabedoria a todos os envolvidos.
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