O Globo
Como já disse um sábio, a verdadeira
generosidade com o futuro consiste em dar o melhor de si no presente
A história circulou no rastro do Furacão Katrina, que em 2005 devastou Nova Orleans e deixou a cidade 80% submersa. Também foi lembrada em várias línguas durante a pandemia mundial de Covid-19 e seu agoniante corolário de mais de 7 milhões de mortos. Agora, diante da destruição pelas águas de todo um modo de viver gaúcho, ela volta à baila. Compreende-se: em tempos de dor coletiva, referências edificantes viram bálsamo — mesmo quando não são, necessariamente, verdadeiras. Conta-se que a cultuada antropóloga americana Margaret Mead, quando questionada sobre que marcador da evolução considerava ser a primeiríssima evidência de uma sociedade civilizada, citou um fêmur humano de 15 mil anos atrás, encontrado num sítio arqueológico. Nem ferramenta primitiva, nem artefato religioso, nem qualquer forma rudimentar de organização comunal, mas um fêmur — um fêmur fraturado que havia sarado.
Mead explicou que, no reino animal daquela
Pré-História, quebrar uma perna equivalia a morrer de fome, sede ou como presa
de outros animais, por não ter tido tempo de sarar. Um fêmur sarado significava
que alguém havia decidido ajudar o ferido, transportara-o a lugar seguro e
permitira que se recuperasse. A conclusão da mestra: a civilização começa
quando alguém ajuda outra pessoa que precisa de ajuda.
Nem os biógrafos de Mead nem pesquisadores de
sua obra — que inclui uma formidável palestra de 1968 sobre o tema “Quando uma
cultura se torna civilização?” — encontraram referência precisa do diálogo
entre a antropóloga e um aluno (Data? Local? Contexto? Nome do interlocutor?).
Mesmo assim, a história passou a ser adotada como plausível e repetida como
saber científico sempre que dele necessitamos, como agora. São tempos de
transição, ou “liminalidade”, termo do antropologuês que designa nossa
ambiguidade e desorientação durante transformações e rupturas.
Há vezes em que cataclismos naturais ou
criados pelo ser humano aceleram a História, revelando o caminho para o qual
determinada sociedade já embicava sem saber. Outras vezes, a ocorrência de
pragas, pandemias ou guerras altera de forma fundamental a própria trajetória
de sociedades. Ainda é cedo para prever o que emergirá das ruínas e devastação
humana em Gaza e
prematuro imaginar que, da calamidade em curso no Rio Grande do
Sul, brote um Brasil visionário, capaz de pensar, agir, prevenir,
colaborar, pagar sua cota individual e coletiva de engajamento. Como já disse
um sábio, a verdadeira generosidade com o futuro consiste em dar o melhor de si
no presente.
Por enquanto, o momento gaúcho ainda é
emergencial, de empatia coletiva e afoiteza geral para conseguir atravessar um
dia a mais. A destruição no Sul tem sido comparada a um cenário de guerra,
então convém apertar os cintos: os períodos do pós-guerra costumam ser
lembrados pelos sobreviventes como mais difíceis e amargos que a própria
guerra. Explica-se: antes de uma guerra estourar, vigora um sistema e existem
regras, não importa se boas ou ruins. Cada um sabe onde mora, faz parte de uma
sociedade, conhece os caminhos do sustento. Em tempos de guerra, o sistema
colapsa, regras podem ser quebradas na busca de um abrigo ou alimento. O foco
está em sobreviver. Quem não consegue, morre antes de poder contar sua história
para a História.
David Laderoute, coronel reformado do
Exército canadense, descreve assim o que vem depois: “No pós-guerra, o sistema
continua quebrado, moradias estão em ruínas, lavouras foram abandonadas, o
comércio de alimentos sofre restrições. Mas as regras voltaram — deixou de ser
possível e permitido fazer qualquer coisa para poder sobreviver”. O inimigo
passa a ser a ausência de instituições em pleno funcionamento, a precariedade
na subsistência. Faltam alimento, saúde, escolas, a retomada da vida anterior
se revela distante.
Durante a guerra predomina a
esperança/certeza de que um dia ela haverá de terminar, ficando para o day
after a possibilidade de encararmos os destroços que sobraram. Cansaço,
impaciência, desilusão, raiva se infiltram no tecido social diante da dimensão
da empreitada. Quase 30 anos depois do fim da guerra na Bósnia, o país ainda
não conseguiu descontaminar seu solo de aproximadamente 80 mil minas
terrestres. Serve como metáfora.
Assim sendo, melhor acreditar na fábula humanista atribuída a Margaret Mead: “A civilização começa quando uma pessoa ajuda outra que precisa de ajuda”.
2 comentários:
Excelentes reflexões da colunista!
A colunista é sempre ótima.
Postar um comentário