terça-feira, 28 de maio de 2024

Gideon Rachman - EUA quebram regras internacionais enquanto defendem mundo livre

Financial Times / Valor Econômico

No mundo atual, os EUA estão mais uma vez fazendo concessões desconfortáveis como parte de uma luta maior contra as principais potências autoritárias

Como princípio organizador da política externa ocidental, a “ordem internacional baseada em regras” (OIBR) há muito tem sofrido de falhas desastrosas. A frase não significa nada para uma pessoa normal. Dessa forma, trata-se de um conceito nada inspirador. As pessoas podem ir à guerra para defender a liberdade ou a pátria-mãe. Ninguém vai lutar e morrer pela OIBR.

Ainda assim, algumas autoridades ocidentais de alto escalão parecem apaixonadas pelo conceito. Antony Blinken, o secretário de Estado dos Estados Unidos, gosta de fazer apelos à OIBR quando visita a China. Rishi Sunak, premiê britânico, a colocou no cerne da política externa do Reino Unido. Seu provável sucessor, Keir Starmer, um ex-advogado, terá o mesmo compromisso com a ideia.

Quando critica a agressão russa, Blinken argumenta que os EUA defendem um mundo baseado em regras, e não no poder bruto. É uma ideia atraente. Mas as regras são feitas para serem coerentes. E as próprias ações dos EUA vêm enfraquecendo partes vitais da ordem baseada em regras.

Nas últimas duas semanas, essas contradições foram expostas visceralmente. As tarifas de 100% que o governo de Joe Biden impôs aos veículos elétricos (VEs) chineses são praticamente impossíveis serem conciliadas com regras internacionais. Como coloca um artigo do centro de estudos Bruegel: “As tarifas derrubam qualquer noção de que os EUA pretendem respeitar as regras da Organização Mundial do Comércio.”

A resposta dos EUA à perspectiva de que o Tribunal Penal Internacional (TPI) mova acusações de crimes de guerra contra Benjamin Netanyahu, premiê de Israel, também é reveladora. Em vez de apoiar o esforço do TPI para aplicar o direito internacional, Blinken disse ao Congresso dos EUA que consideraria impor sanções ao TPI.

Claro, os EUA podem apresentar argumentos para justificar essas ações. É possível argumentar que o TPI excedeu sua jurisdição ou interveio de forma equivocada em um conflito em andamento. Os EUA também repetem que a China tem violado as regras do comércio internacional há décadas.

No entanto, como se costuma dizer, na política, quando você está explicando, você já está perdendo. Em grandes partes do mundo, a asseveração dos EUA de defender a OIBR é tratada como piada. Então, o que é possível salvar em meio a essa bagunça? Uma resposta é que Blinken e companhia falem menos sobre a OIBR e mais sobre defender o mundo livre. Essa é uma descrição mais precisa e compreensível do que realmente se trata a política externa ocidental.

EUA, União Europeia, Reino Unido e outras democracias como Japão, Coreia do Sul e Ucrânia atualmente estão lutando para conter as ambições territoriais e políticas de países autoritários — acima de todos, China e Rússia. Um mundo em que esses países são mais poderosos será menos seguro para pessoas e países livres.

Em contraste com a defesa de uma OIBR — que implica absoluta coerência —, a defesa do mundo livre envolve aceitar certa incoerência necessária. Durante a Guerra Fria, os EUA e aliados fizeram algumas alianças táticas com governos não democráticos, como parte de um esforço de conter e, finalmente, derrotar a União Soviética.

No mundo atual, os EUA estão mais uma vez fazendo concessões desconfortáveis como parte de uma luta maior contra as principais potências autoritárias. As tarifas dos EUA sobre os VEs chineses fazem pouco sentido como uma defesa da OIBR. Fazem muito mais sentido quando vistas como um esforço para impedir que a China domine as indústrias do futuro.

Para combater as reivindicações territoriais chinesas no Mar do Sul da China, os EUA acusam corretamente Pequim de violar a convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar. O problema é que os próprios EUA não ratificaram essa convenção em particular. Então, por que não aceitar que a motivação principal dos EUA não é apenas defender o direito internacional —, mas impedir que uma rota comercial crucial fique sob domínio de uma potência autoritária?

E quanto a Israel? Muito do que Biden vem fazendo pode ser explicado pela política interna. Mas seu apoio obstinado a Israel também é sustentado por um instinto de defender aliados democráticos. A recusa dos EUA de contemplarem a ideia de que Netanyahu possa ter cometido crimes de guerra na Faixa de Gaza desacredita o país. Mas fica mais fácil entender o desconforto dos EUA com um processo que vê a única democracia no Oriente Médio no banco dos réus, enquanto líderes de Síria e Irã escapam da acusação por seus crimes.

Conter a retórica sobre a OIBR não deveria significar abandonar o direito internacional por completo. Isso seria uma receita para a anarquia global. Também seria imprudente e impraticável. Há muitas leis internacionais e encontrar-se do lado errado delas pode ser muito desvantajoso. Vladimir Putin — e talvez, em breve, Netanyahu — descobrirão que seus planos de viagem estão profundamente restritos por ordens do TPI.

Rússia e China sempre argumentaram que suas ações são coerentes com as leis internacionais — mesmo quando claramente não são. Os EUA, às vezes, precisarão fazer o mesmo. O “lawfare” internacional é parte da luta emergente entre poderes democráticos e autoritários.

Isso não significa que os dois lados estão no mesmo nível moral. Como na Guerra Fria e nas lutas anteriores do século 20, as democracias do mundo não precisam se desculpar por serem impiedosas na defesa de sociedades livres.

 

2 comentários:

Unknown disse...

Ótimo, desde que temperado pelo que Manuel Castell publicou, neste mesmo número, sobre a ilegitimidade crescente das democracias liberais. Regimes autoritários acabam sendo julgados melhores dos que os denominados livres, pelos cidadãos, precisamente porque as democracias não estão mais atendendo às demandas básicas de existência digna para esses mesmos cidadãos. Veja-se, nesta mesma edição, o caso de considerar-se desvincular o piso do benefício previdenciário brasileiro do salário mínimo no país, quando, no artigo, está expresso que atender as necessidades dos cidadãos, nesse país, exigiria 4,9 salários mínimos. Esse tipo de democracia não pode durar muito tempo mesmo.

Mais um amador disse...

Pode-se elencar uma lista " imensa " de fatores que justifiquem a crise das democracias liberais, especialmente em países como o Brasil. A corrupção desenfreada e os conluios entre agentes públicos e políticos de todos os partidos com empresas privadas é um deles. A internet, nas últimas décadas, serviu para capilarizar informações como não havia possibilidade de se fazer antes. Por mais que se fale em notícias falsas e tudo o mais, boa parte do público acompanha o que ocorre e está de olho nos podres produzidos no universo da política profissional. Inclusive, mesmo levando-se em conta as claquetes dos tais líderes populistas, parte da população, imagino, quer seus direitos resguardados e menos discursos. Guardadas todas as exceções
e limites do eleitorado, como práticas clientelistas, por exemplo, querem mais ações efetivas e menos protocolos de intenções e jogos de cena.
Por outro lado, pode-se criar as leis que forem, os direitos que forem, se não houver um mínimo de crescimento econômico, de desenvolvimento econômico, nada feito.
Riqueza econômica, boa educação e ensino, com saúde pública de qualidade, não são construídos apenas com papéis, discursos ou boas intenções.