O Estado de S. Paulo
Conservador nos costumes, vice pode afastar
centristas, fundamentais para vencer eleição
As primeiras duas semanas de J.D. Vance como
vice da chapa de Trump dificilmente poderiam ter sido piores. A tarefa
principal de qualquer político que se apresenta no palco nacional pela primeira
vez, como Vance o fez durante a convenção republicana, é construir uma imagem
clara e uma narrativa convincente que fortaleça as chances da chapa.
No caso de Vance, porém, os democratas reagiram de forma mais ágil à indicação e inundaram as redes com vídeos de Vance compartilhando ideias vistas como controversas por eleitores indecisos. Um deles é um clipe de 2021, no qual Vance alertou que os EUA estavam sendo governados por “um bando de mulheres sem filhos, infelizes com suas próprias vidas”.
Citou como exemplo a vicepresidente, Kamala
Harris, que tem dois enteados. Embora atacar mulheres por não terem tido filhos
possa consolidar o apoio de ultraconservadores que já iam votar em Trump, Vance
pode atrapalhar as tentativas de atrair centristas, fundamentais para vencer a
eleição.
Apesar de Vance ser descrito como “mais
trumpista que Trump”, ele difere de seu mentor em um aspecto chave: o
conservadorismo nos costumes. Graças a uma trajetória pessoal nada conservadora
– que inclui traições, sexo com uma atriz pornô e divórcios –, Trump consegue
atrair eleitores que apreciam sua retórica anti-imigrante, mas se opõem a uma
agenda ultraconservadora que prevê interferências diretas do Estado na vida
íntima dos cidadãos.
MODERAÇÃO. Ciente da necessidade de não
assustar os moderados, Trump se afastou do “Projeto 2025”, do centro de estudos
Heritage Foundation, elaborado por vários oficiais de seu governo. O documento
prevê, entre outras coisas, a criação de uma “vigilância do aborto” por parte
de governos estaduais, a proibição da pílula abortiva usada na maioria das
interrupções voluntárias da gravidez e a limitação do uso da pílula do dia
seguinte.
É como se os escândalos sexuais de Trump
ajudassem a amenizar a retórica conservadora e moralista do próprio trumpismo.
Vance, por outro lado, tem defendido que o Estado possa processar mulheres que
foram a outro Estado interromper a gravidez de forma legal, e seu estilo é bem
menos capaz de amenizar preocupações dos moderados. As pesquisas não deixam
nenhuma dúvida de que a maioria da população se opõe a restrições amplas ao
aborto que Vance defendeu no passado, inclusive em caso de estupro ou incesto.
Outro ponto é que a desistência de Biden
alterou a dinâmica da corrida eleitoral de uma forma que levou doadores
republicanos a questionarem a escolha de Vance. Enquanto o senador de Ohio se
destaca por sua lealdade inquestionável a Trump, sua escolha pode ser lida como
sinal de uma sensação de “já ganhou” da campanha republicana.
Enquanto tal sensação possa ter sido
compreensível enquanto Biden era candidato, parece evidente que Kamala
energizou a campanha. Como o estrategista democrata Ferdinand Amandi comentou
recentemente, o cenário mudou “de uma eleição perdida para uma eleição que
agora parece poder ser ganha (pelos democratas)”.
Em retrospectiva, parece que a escolha de um
candidato conservador mais tradicional e experiente – como Trump fez em sua
campanha vitoriosa em 2016, quando escolheu o governador Mike Pence – teria
sido menos arriscada. Sobretudo porque, se for vitorioso em novembro, Trump
seria o presidente eleito mais velho da história dos EUA, ainda mais velho do
que Biden quando venceu em 2020.
Nada disso sugere que Kamala Harris seja a
favorita. Será preciso aguardar para verificar se a candidata do Partido
Democrata conseguirá manter a energia otimista que a desistência de Biden
gerou; se ela conseguirá evitar os erros de sua breve campanha a presidente em
2020, quando desistiu antes das primeiras primárias democratas; e se conseguirá
encontrar um vice de chapa que lhe seja complementar, reduzindo as
vulnerabilidades de sua campanha aos olhos dos eleitores centristas nos
Estados-chave.
TEMPO. Considerando o tempo reduzido que
Harris terá para preparar a campanha e suas taxas de aprovação ao longo dos
últimos anos, Trump – que tentará descrever sua oponente como uma esquerdista
radical – ainda tem, por enquanto, mais chances de ser eleito daqui a menos de
100 dias.
Mesmo assim, tudo indica que será uma votação
bem mais apertada do que quando o candidato democrata era o atual presidente.
Nesse caso, é possível que Trump chegue a se arrepender de ter escolhido Vance
como vice de chapa. •
Um comentário:
Não esquecendo que mesmo Trump tendo menos votos que sua oponente acabou sendo ''eleito'' em 2016.
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