O Globo
Houve fraude. Para ser mais claro: há um
golpe de Estado em curso na Venezuela
O bolsonarismo separou, na direita
brasileira, quem tinha convicções democráticas de quem não tinha. Não é uma
afirmação justa para fazer a respeito de todos os brasileiros que votaram em
Jair Bolsonaro em 2022. A maioria das pessoas não pensa muito sobre política,
no máximo lida como se fosse esporte com torcida. Não é o caso de todo mundo
que pensa política diariamente e compreende o processo democrático. Bolsonaro
deixou claro no governo que não era democrata. Quem entendeu isso e seguiu,
pois é. Esta eleição na Venezuela terá efeito similar na esquerda. Separará os
que têm convicções democráticas dos que não têm.
Vamos ser claros: houve fraude. Para ser mais claro: há um golpe de Estado em curso na Venezuela. Um autogolpe sendo impetrado pelo governo Nicolás Maduro.
No momento em que o Conselho Nacional
Eleitoral, controlado pelo presidente, anunciou a vitória com 80% das urnas
apuradas, muitas coisas estavam ocorrendo. Desapareceram 60% dos boletins de
urna. Lá, como no Brasil, esses boletins devem ser tornados públicos em cada
seção eleitoral. Dão a quantidade de votos que cada candidato recebeu em cada
urna. A oposição só teve acesso a 40% deles. Durante a noite e madrugada,
motociclistas da milícia bolivariana e militares ameaçaram e intimidaram
pessoas que esperavam esses resultados à porta de zonas eleitorais por todo o
país. Urnas foram retiradas ilegalmente ainda não sabemos de quantas seções.
Ou seja: não basta que o CNE apresente um
número fechado de votos. Não é assim que funciona. O TSE,
aqui, não faz isso. É preciso apresentar a lista de que urnas foram apuradas,
quantos votos cada candidato tinha em cada uma, e esse número precisa bater com
os boletins físicos tornados públicos nas seções. No Brasil é assim. É isso que
faz uma eleição digital segura. Todo brasileiro pode, imediatamente, conferir o
resultado de quantas seções quiser. Basta fotografar os boletins e comparar com
o que diz sobre aquela localidade o site do TSE.
Na Venezuela, deveria ser igual. Mas não são
apenas os boletins em papel que desapareceram. O site do CNE também ficou
inacessível.
O governo Nicolás Maduro não permite que
Henrique Capriles, líder da centro-esquerda, concorra às eleições. Não permite
que Leopoldo López, da centro-direita, dispute o cargo. Bloqueou, neste
ano, María Corina
Machado, a terceira líder mais importante da oposição. Ela não foi a
única proibida de se candidatar.
O Instituto V-Dem, que reúne centenas de
cientistas políticos no mundo dedicados a avaliar democracias, classifica os
regimes em quatro. Democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia
eleitoral e autocracia fechada. Numa democracia liberal, não só todos têm
chances de vencer nas urnas, como todos os cidadãos são realmente iguais
perante a lei. O Brasil é uma democracia eleitoral. As eleições são livres, mas
cumprimos só a porção “democracia” do regime. Não garantimos a todo cidadão que
ele terá rigorosamente os mesmos direitos de todos os outros, como exige a
porção “liberal”. Democracia liberal fica para os suecos, não são muitas pelo
mundo. A Venezuela é uma autocracia eleitoral. Não é garantido a todo mundo o
direito de concorrer numa eleição, mas elas pelo menos existem e alguma chance
a oposição tem de chegar ao poder.
Ou tinha. Na classificação do V-Dem, só havia
uma autocracia fechada nas Américas. Cuba. Se a vitória de
Maduro se consolidar, mesmo com a boca de urna do Edison Research confirmando a
derrota em 64% para Edmundo González e 31% para Maduro, a coisa muda. Se a
fraude for mantida, e o golpe de Estado se consolidar, até o arremedo de
eleições que a Venezuela tinha deixará de ter.
A palavra é ditadura. Não precisamos romper
relações diplomáticas — democracias se relacionam com ditaduras. Só não devemos
fingir que é outra coisa. Na Venezuela não há liberdade de imprensa, existem
prisioneiros políticos e tortura nas prisões, exilados e, agora, só o
governismo tem chance nas eleições.
Há motivos para achar que houve fraude em
pleitos passados. A eleição em que Chávez venceu Capriles por menos de 2 pontos
percentuais teve queda de luz no prédio do CNE durante a contagem, e o
ex-presidente virou sobre seu opositor no período de blecaute. Eu estava lá,
como observador internacional a convite do Sindicato de Jornalistas local. Mas
vá — as pesquisas mostravam mesmo que seria apertado.
Um pedaço da direita brasileira é golpista.
Será bom saber, com clareza, que pedaço da esquerda está conosco no conjunto
dos democratas. E que pedaço acha que democracia vale só quando é para a
esquerda estar no poder. Ficará claríssimo nos próximos dias.
2 comentários:
Quero ver o nobre colunista agora dar nome aos bois, o PT já declarou total e irrestrito apoio ao Maduro, o colunista vai falar que Lula é tudo isso que ele mesmo acabou de escrever????
Verdade,eu faço parte da esquerda democrática,semrpre!
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