O Globo
Sem uma compreensão ampla sobre os valores da
sociedade, políticos podem dar um tiro no pé
A concorrência na política em meio à grande
polarização leva por vezes a posicionamentos precipitados dos políticos. Buscam
holofotes, mas baseados em visões de uns poucos, do seu entorno ou de pequenos
grupos. Porém, sem uma compreensão mais ampla sobre as crenças e valores dos
grandes segmentos da sociedade, a estratégia pode se provar um tiro no pé.
É o caso da tentativa da oposição de desgastar o presidente Lula com o projeto de lei que equipara o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) teria afirmado: “O presidente mandou uma carta aos evangélicos na campanha dizendo ser contra o aborto. Queremos ver se ele vai vetar. Vamos testar Lula.”
No entanto, uma enquete conduzida pela Câmara
dos Deputados aponta que 88% das pessoas discordam totalmente da medida, em um
total de mais de 1,1 milhão de participantes.
O deputado, ao restringir seu canal de
diálogo a grupos mais próximos, parece ter perdido contato com sua base
eleitoral, de evangélicos.
O antropólogo Juliano Spyer, pesquisador dos
valores dos diferentes grupos evangélicos, apontou que o estupro é considerado
crime hediondo nessas comunidades, sendo ultrajante condenar a vítima, que já
sofre transtorno emocional, à prisão. Esses segmentos avaliam que a decisão de
abortar é assunto da mulher com Deus, e não da sociedade.
Com esses desdobramentos, o PL empacou.
O presidente Lula também tem se precipitado.
Segundo matéria do GLOBO, a decisão de criticar o presidente do Banco Central,
Roberto Campos Neto, teria sido em parte estimulada por pesquisas encomendadas
pelo governo que indicariam que o presidente ganha apoio na opinião pública
quando critica os juros altos.
Pesquisa Genial-Quaest recente reforçou o
argumento ao apontar que 66% daqueles que souberam da crítica de Lula
concordaram com ela.
No entanto, os ganhos políticos parecem
modestos à luz do pouco conhecimento do ocorrido (apenas 34% ficaram sabendo) e
pelo fato de apenas 29% das pessoas saberem que Campos Neto foi indicado por
Bolsonaro.
Já os custos poderão se mostrar muito
elevados, devido às consequências sobre os preços de ativos, como a alta do
dólar, dificultando a redução dos juros pelo BC, e dos juros de mercado,
apertando as condições financeiras na economia. Ao final, os consumidores vão
sofrer com o crédito mais caro.
Além disso, o custo inflacionário poderá
acarretar desgaste político, especialmente pelo impacto do câmbio na inflação
de alimentos. Esta parece exercer grande influência na aprovação do presidente.
A Genial-Quaest aponta o crescimento da
aprovação de Lula (54% em julho ante 50% em maio), depois da queda no início do
ano. O avanço ocorreu particularmente entre as mulheres (57% de aprovação ante
51% em fevereiro e 55% em dezembro).
Nas aberturas por escolaridade e renda, as
variações são maiores entre os mais humildes, com até ensino fundamental ou
rendimento de até dois salários mínimos. Na abertura regional, destacam-se as
regiões Sudeste e Centro-Oeste, que, em termos relativos, têm menor
participação de pessoas no Bolsa Família.
Mulheres das classes populares sofrem mais
com a inflação, especialmente a de alimentos. Além do efeito direto no consumo
de bens essenciais, há possivelmente impacto na sua confiança, dada a maior
frequência na aquisição de alimentos — a cada compra, um pacote menor.
Os movimentos na aprovação do presidente
coincidem com o comportamento da inflação de alimentos, que depois da alta de
4,3% acumulada entre dezembro de 2023 e fevereiro de 2024 (ante 1,3% um ano
antes), subiu 2,0% no acumulado entre março e junho último (ainda que a cifra
seja elevada em relação ao - 0,3% de um ano antes). Pela pesquisa, há percepção
de piora do poder de compra, mas com algum alívio recente.
Enfim, são dois exemplos em que políticos
atuaram com base em retratos parciais, deixando de olhar o todo. O barulho das
redes sociais tampouco parece bom conselheiro. Pela estridência e,
principalmente, porque as classes populares pouco as utilizam para se
manifestar ou se manter informadas da política. A mesma pesquisa aponta que
apenas 31% das pessoas se informam pelas redes, sendo ainda menos relevante
para aqueles menos escolarizados.
Há um Brasil ainda a ser mais bem
compreendido.
Um comentário:
Verdade.
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