Sob o impacto da guerra do Iraque, Habermas e Joseph Hatzinger se encontraram para discutir o tema da necessidade de o poder ser submetido a um direito comum. Os dois intelectuais analisaram a nova ordem política e cultural do ocidente. A reunião teve lugar na Academia Católica da Baviera, em Munique, em 19 de janeiro de 2004. O cardeal Hatzinger, um pouco mais de um ano depois se tornaria o Papa Bento 16. Transcrevemos algumas dessas reflexões, à época divulgadas pela Folha de São Paulo.
J. Habermas: “Os secularizados não devem negar potencial de verdade a visões de mundo religiosas”
“O tema proposto para nossa discussão evoca uma pergunta que o historiador Ernst Wolfgang Böckenforde apresentou nos anos 60 por meio da seguinte fórmula: o Estado liberal e secularizado consome pressupostos normativos que ele mesmo não pode garantir?
Nisso se expressa a incerteza de que o Estado constitucional democrático possa renovar os pressupostos da sua existência a partir de seus próprios recursos, assim como a suspeita de que ele está voltado para tradições autóctones quanto a concepções de mundo ou religiosas, em todo caso, de modo coletivamente obrigatório, éticas. Isso colocaria o Estado, obrigado a uma neutralidade quanto a concepções de mundo, em dificuldade em vista do `fato do pluralismo`. Entretanto somente essa inferência não fala contra a própria suposição.
Em primeiro lugar, gostaria de especificar o problema de acordo com dois pontos de vista. Sob o ponto de vista cognitivo, a dúvida relaciona-se à questão se um domínio político, após uma total positivização do direito, ainda é acessível a uma justificação secular, quer dizer, não religiosa ou pós-metafísica.
Ainda que se conceda uma tal legitimação, subsiste, quanto ao ponto de vista motivacional, a dúvida se uma coletividade pluralista quanto a concepções de mundo pode ser estabilizada de um modo normativo, portanto para além de um simples modus vivendi, pela subordinação a um entendimento de fundo, na melhor das hipóteses formal, limitado a procedimentos e princípios.
Mesmo que se possa desmanchar tal dúvida, permanece o fato de que ordenamentos liberais se encontram direcionados para a solidariedade de seus cidadãos, e suas fontes poderiam, em consequência de uma secularização `descarrilhada`, fracassar completamente. Esse diagnóstico não pode ser recusado, mas não precisa ser entendido como se os cultos entre os defensores da religião estivessem, a partir disso, criando, até certo ponto, uma mais-valia.
Em vez disso, vou sugerir que se entenda a secularização cultural e social como um processo didático duplo, que obriga as tradições do Iluminismo assim como as doutrinas religiosas a uma reflexão acerca das suas respectivas fronteiras. Em vista de sociedades pós-seculares, coloca-se a questão acerca de que atitudes cognitivas e quais expectativas normativas o Estado liberal precisa atribuir aos seus cidadãos crentes e descrentes no convívio entre si”
Joseph Ratzinger: “O homem desceu até o fundo do poder, até a fonte de sua própria existência”
“Na aceleração do ritmo dos desenvolvimentos históricos na qual nos encontramos, parece-me que destacam-se, sobretudo, dois fatores como marcas de um desenvolvimento que antes começava a mover-se lentamente: de um lado, temos a formação de uma sociedade mundial, na qual os poderes políticos, econômicos e culturais singulares têm sua atenção voltada uns para os outros sempre mais e, nos seus espaços diversos, tocam-se e interpenetram-se mutuamente.
Por outro lado, temos o desenvolvimento das possibilidades do homem, do poder, de fazer e destruir, que – para muito além de tudo com que se estava acostumado até agora – levanta a pergunta pelo controle jurídico e moral do poder. Assim é altamente urgente a pergunta acerca de como as culturas que entram em contato podem encontrar fundamentos éticos que possam conduzir sua comunhão ao caminho justo e construir uma configuração comum, responsável juridicamente, que dome e ordene o poder”
Cf. Folha de São Paulo, O cisma do século 21, Mais!, 24 de abril de 2005.
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