Toda morte nos dói. Algumas mais que outras pela proximidade, outras ainda mais pela dimensão da pessoa. Fernando Lyra é um desses cuja morte toca muito, porque ele era mais de um Fernando.
Perdemos o Fernando político. Um dos mais importantes ao longo do século XX. Um líder que sempre esteve do lado certo da luta pela democracia, e soube levar adiante esta luta com competência. Membro do grupo dos autênticos, um dos seus fundadores e dos mais firmes e combativos, resistiu à ditadura em todos os momentos e soube construir a saída que nos tirou do autoritarismo e nos colocou na democracia. Um político com coerência, criatividade e competência. Soube ser coerente no lado certo correndo todos os riscos, não desanimou com a derrota das Diretas, Já!. Teve a coragem de reorientar a estratégia de luta, a criatividade de enfrentar o desafio de convencer as forças democráticas para a saída pela via indireta, e teve a competência de articular os votos necessários para viabilizar a vitória do regime civil sobre o militar. Sem a ida de Fernando Lyra para Tancredo, com a coragem que isto exigiu diante dos que ainda queriam tentar as diretas, mesmo que alguns anos depois, sem a coordenação de Fernando ao trazer os demais líderes "autênticos" (Arraes e Brizola) e conseguir buscar um a um os votos necessários no Colégio Eleitoral, muito provavelmente a democracia não teria chegado em 1985. Fernando vai fazer falta no mundo da Política, aquela que se faz com princípios, com objetivos e com habilidade para ouvir, convencer e construir o novo.
Perdemos o Fernando executivo de grandes políticas. Aquele que no Ministério da Justiça foi capaz de, em poucos meses, ou mesmo semanas, acabar com a censura, liberar todos os partidos, facilitar as relações diplomáticas com todos os países e iniciar o processo da Constituinte. Fernando vai fazer falta no mundo da política consequente, capaz de executar o que no início parecia impossível.
Perdemos o Fernando nacional, pernambucano de Caruaru. Apesar de ser um raro político com firme convicção, preocupação, análise e ação no plano nacional, poucos políticos se identificavam tanto com seu povo, seu Estado, sua cidade, quanto ele. Um político absolutamente não corporativo. Capaz de colocar os interesses nacionais e de longo prazo na frente de seus interesses eleitorais imediatos. Capaz, inclusive, de dizer o que pensava mesmo sabendo que iria contrariar, não apenas seus aliados mais próximos, mas até mesmo os seus eleitores. Em um tempo da política regida pela pesquisa de opinião pública, pelos interesses locais, corporativos e presos ao imediatismo eleitoral, Fernando se destacou e vai fazer falta como político nacional caruaruense.
Perdemos o Fernando animador. Poucas pessoas são capazes de manter um diálogo, desde os assuntos mais sérios até os mais divertidos, quanto ele foi capaz ao longo de sua vida. Fernando era o que se pode chamar de um maravilhoso bom papo, um homem de conversa. De todos seus méritos, este é um que se destacava de imediato para todos que o conheciam. Fernando vai fazer falta no mundo da conversa.
Perdemos o Fernando amigo. E esta será uma grande falta que fará. Todos que eu conheço se referiam a ele como "um dos meus melhores amigos" e alguns diziam com clareza: "o meu melhor amigo". Porque ele sabia ser ouvinte das confidências, sabia confidenciar, sabia cobrar, sabia alertar, sabia sorrir na hora certa e mostrar tristeza quando ela era necessária. O Fernando amigo vai fazer muita falta a muitos de nós.
Perdemos o Fernando generoso. Não apenas com os amigos, mas com todos que ele conhecia. Era generoso em todos os aspectos e com todas as pessoas. Perdemos um homem generoso, coisa rara no mundo de hoje.
Perdemos um ser raro, que era plural nas qualidades: político, amigo, conversador, generoso, nacional sem perder o sentimento local.
Perdemos Fernandos, nossa tristeza é plural. Grande, pelos amigos, pelo Brasil, por sua família.
Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT-DF
Fonte: Jornal do Commercio (PE)
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