- O Estado de S. Paulo
Em junho próximo, o governo Dilma deve definir a meta de inflação para 2016. O mais provável é que, sem muito alarde, seja reafirmada a meta em vigor há anos, ou seja, 4,5% mais ou menos dois pontos porcentuais. O momento não sugere mudança, já que, em reiteradas declarações, nossa presidente e seu ministro da Fazenda insistem em que a inflação está "há dez anos" dentro da meta. Dado que a inflação média anual nos quatro anos do governo Dilma deverá ficar em cerca de 6% ou pouco mais, a expressão "dentro da meta" passou a significar "abaixo do teto da meta", que é de 6,5%.
Alguém poderia perguntar: e qual é o problema com isso, se a meta está sendo cumprida? Deixando claro que não há nenhum desastre à vista nessa área, o fato é que há problemas, sim. E o que é grave: o espaço para manobra, e para erro, é cada vez mais reduzido.
Na verdade, a inflação só está "dentro da meta/abaixo de seu teto" porque, preocupado com determinados itens de peso no cálculo do índice oficial de preços ao consumidor, o governo recorreu ao controle direto ou indireto de preços administrados, que cresceram apenas no insustentável nível de 1,5% em 2013, enquanto os preços livres aumentaram 7,3% - e os serviços, mais de 8%.
Com efeito, estimativas hoje disponíveis mostram que acumulamos uma "inflação reprimida" da ordem de 1,5 ponto porcentual no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo(IPCA). Em outras palavras, na ausência dos vários controles sobre preços administrados direta ou indiretamente pelo governo, a inflação brasileira estaria hoje certamente acima de 7%. Não há, portanto, espaço para o discurso do "estamos dentro da meta/abaixo do teto". Na realidade, não estamos.
Certamente teremos de voltar a uma inflação "dentro da meta" em 2015 e reduzi-la ainda mais em 2016 para que o discurso de que o objetivo é convergir ao longo do tempo para perto do centro da meta (4,5%) possa ter um mínimo de credibilidade. Uma estratégia de convergência que hoje, definitivamente, não depende apenas do Banco Central (BC) - o qual, justiça lhe seja feita, não embarcou no discurso do "abaixo de 6,5%" como a definição aceitável do "cumprir a meta".
O fato é que as expectativas quanto ao curso futuro da inflação estão há alguns anos desancoradas dos 4,5% do centro da meta. Supondo que esta não vai ser alterada agora em junho, e levando em conta que a inflação efetiva (isto é, não represada pelos controles de preços, que não se sustentam no tempo) hoje está bem acima do teto da meta, seria preciso reduzir a inflação efetiva atual em pelo menos dois pontos porcentuais.
E isso pode demandar de dois a três anos a partir de agora. A não ser que alguém espere que o BC possa elevar as taxas de juros para o "whatever it takes" (o nível que for necessário), ou que o real se valorize e se mantenha como tal por tempo relevante, ou que uma baixíssima taxa de crescimento force a queda da inflação por falta de demanda.
Ao menos pelos próximos seis ou nove meses o espaço de manobra para qualquer ação efetiva é extremamente reduzido - como é ainda mais o espaço para novos erros. Situações difíceis não implicam inexistência de opções. Mas estas podem exigir, para recuperação de confiança abalada, que o horizonte de tempo da política macroeconômica relevante não seja apenas o ano-calendário em curso, tampouco os próximos 12 meses, mas um período mais longo, à frente.
Refiro-me ao nosso verdadeiro calcanhar de Aquiles, nossa situação fiscal, que está a exigir uma sinalização: algo que seja factível, crível e defendido com convicção ainda neste ano de 2014. Falo do anúncio de uma decisão de começar a elaborar desde agora um programa fiscal para o triênio 2015-2017.
Estou convencido de que isso seria de interesse do País, e que poderia ser de interesse da própria presidente Dilma Rousseff, bem como dos outros principais candidatos ao cargo nas eleições de outubro. Afinal, estamos tratando da recuperação de uma margem de manobra, hoje muito reduzida, para respostas adequadas da política econômica - parte crucial da recuperação da confiança no Brasil.
Como já notei neste espaço, isso já foi feito mais de uma vez no passado recente, em 1998-1999 e em 2002-2003, e funcionou. Agora, em 2014, apesar da evidente recuperação da economia norte-americana e do clima mais confiante na capacidade da Europa de resolver gradualmente seus inúmeros problemas, não há nenhuma possibilidade de volta a um contexto internacional tão favorável quanto aquele que tanto beneficiou, por boa parte, o governo Lula.
Mais uma razão, se preciso fosse, para que o Brasil comece desde agora a fazer as coisas mais urgentes, a começar por destravar as inúmeras armadilhas visíveis à frente - algumas de "nossa" própria montagem, em particular nas áreas de energia elétrica, óleo e gás e infraestrutura.
Dentre as urgências no gradualismo está a questão fiscal: o nível, a composição e a eficiência tanto do gasto público quanto da arrecadação do governo. Daí a sugestão de um esforço, visando o próximo triênio, que tenha uma clara diretiva presidencial, expressa com crível convicção, de que é preciso começar a programar a redução da velocidade de crescimento das despesas primárias do governo em relação à velocidade de crescimento da economia. Bem como aumentar a participação dos investimentos em relação aos demais gastos.
Fica difícil quando se aceita a frase famosa de Néstor Kirchner: "Para mim, gasto é investimento". Ela expressa bem uma postura muita difundida entre nós. Mas sempre caberá perguntar: qualquer gasto? Porque haja Tesouro, haja carga tributária, haja aumento de dívida bruta, haja impostos sobre as gerações futuras, se qualquer gasto for considerado sempre como investimento em "alguma coisa". Sem definição clara de prioridades, sem fazer escolhas difíceis, sem avaliar o reduzido espaço para manobra - e para erro.
Pedro S Malan, economista, foi ministro da fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso.
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