Por Blog do Noblat
Prometo que não vou citar o Marx do 18 Brumário e dizer que a História se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Embora a tentação seja grande, muitos já o fizeram, e a obviedade pode ser cansativa, às vezes.
Relendo “João Goulart, uma biografia”, do professor e pesquisador Jorge Ferreira, um livro denso e fartamente documentado sobre a vida do ex-presidente deposto em março de 1964 por um golpe militar, as pessoas que regem suas crenças pelo facilitário do maniqueísmo — e acreditam que a vida não passa de uma luta entre o bem e o mal — encontrarão motivos para abrir preocupantes fendas em sua muralha de convicções inabaláveis.
Jango era um líder revolucionário determinado a quebrar os padrões clássicos de dominação com ousadia e arrojo político ou um líder reformista vacilante que não foi capaz de conciliar os interesses de quem o empurrava para a aventura e quem queria manter o status quo a qualquer custo, sem ceder um anel, quanto mais os dedos?
Pois é possível ser uma síntese das duas coisas, como o livro prova com exemplos exaustivos, assim como é impossível negar que ele foi retirado do poder ilegalmente por um clássico golpe militar, um quartelazo à latino-americana.
O truque semântico de chamar o golpe de contragolpe preventivo que evitou a instalação de uma ditadura comunista sofre do paradoxo insanável de sugerir que o antídoto contra a implantação de uma ditadura seja a instalação de outra ditadura.
Fazer apostas sobre qual seria a pior alternativa é um jogo que padece de lógica, porque uma delas se materializou e não há como comparar os estragos que fez aos estragos hipotéticos que a outra faria. Um jogo inútil de soma zero.
As circunstâncias históricas detalhadas à exaustão no livro de Ferreira são irrepetíveis.Não há nenhuma semelhança entre a moldura histórica da época e a que enquadra hoje as críticas que se fazem ao tipo de governo — ou desgoverno — que o PT exerce, e sua assombrosa sede de perpetuação no poder. São situações, conjunturas e ambientes históricos diferentes. Por isso, repetir 50 anos depois a marcha da família soa como uma patética tentativa de repetir o voo do Hindenburg na era dos jatos que quebram a barreira do som.
O senso histórico de realidade falta a quem ignora a simbologia profunda da queda do Muro — que alguns preferem ler apenas como um acidente de engenharia civil — e a quem insiste em chamar os militares para cumprir uma missão que não é deles, para a qual não estão e nunca estiveram preparados, e ignora que o chamado à força e a intervenção é a sentença de morte para uma democracia nascente.
O que o livro de Ferreira conclui é que o que se enterrou em 1964, por culpa dos dois lados, foi a experiência liberal-democrática inaugurada com a Constituição de 1946. Repetir o erro seria mais do que uma farsa, uma irreparável tragédia.
Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez e "Armênio Guedes, Sereno Guerreito da Liberdade"(editora Barcarolla).
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