sexta-feira, 4 de abril de 2014

Chico de Assis: Ditadura de 64 nunca foi amena. Violência perdurou por 21 anos

Terror deixou uma sombra paranóica na sociedade que até hoje marca o comportamento dos brasileiros em público

Ayrton Maciel – Jornal do Commercio (PE

Entrevista

Não é verdade que a ditadura de 1964, no Brasil, foi mais amena do que as ditaduras que se seguiram nos anos 70 no Chile, Uruguai e Argentina. E é um erro se pensar que a “repressão violenta” somente se instalou no País com o decreto do Ato Institucional nº 5 (o AI-5), em 13 de dezembro de 1968. O regime foi violente em seus 21 anos.

“Ele apenas recrudesceu (a violência) a partir de 68, porque desapareceram todas as possibilidades de prática política na legalidade. Fui preso em julho de 1970 e torturado durante cinco dias no Dops, na Rua da Aurora. Oito meses depois, voltei a ser torturado no quartel da Aeronáutica, II Base Aérea”, revela Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho (Chico de Assis), jornalista e advogado, 67 anos.

O terror ficou como uma sombra paranóica na vida de presos e torturados. “Até hoje, quando entro em um restaurante, nunca fico com as costas voltadas para a porta de entrada”, confessa a marca deixada pela ditadura, em entrevista ao Jornal do Commercio.

JORNAL DO COMMERCIO - Defensores do Golpe de 64 alegam que a violência do regime militar "não foi tão grave ou tão extensa" quanto em outros países da América do Sul, como Argentina, Chile e Uruguai. A repressão pode ser medida pela intensidade?

CHICO DE ASSIS - Essa violência foi agressiva e se estendeu pelos 21 anos de ditadura. Instaurada a ditadura em 64, ela foi muito agressiva de 1964 a 1968, tanto nas manifestações estudantis, que aqui em Pernambuco foram marcadas permanentemente pela proibição e pela violência, quanto também pelas prisões quase em massa que ocorreram nesse período. Aqui, particularmente tivemos o governador o mais progressista dos que estavam governando (antes de 64, Miguel Arraes), que se recusou a renunciar e foi preso em palácio, e o Estado sofreu uma violência das mais agressivas. Dezenas, centenas de trabalhadores rurais, mobilizados por Francisco Julião e Gregório Bezerra, estavam em Palmares esperando um sinal de resistência do governador, foram perseguidos e presos, e dezenas desapareceram. Essa conversa de que de 64 a 68 o golpe foi ameno, não é nada disso, ele apenas recrudesceu a partir de 68, porque aí desapareceram definitivamente as condições de se ter uma atividade política na legalidade. A partir daí, os que estavam em manifestações estudantis optaram por enfrentar o regime pela via armada. Eu fui um desses, e fui preso em 1970 e só sai da prisão em 1979, três meses antes da anistia que foi parcial, excludente e mesquinha porque tentou nos dividir, os que tinham se envolvido com os que não tinha se envolvido em ações armadas. Todos foram vitimas da repressão da ditadura.

JC - Ela foi logo pós golpe e se aprofundou ao longo do regime. O que você viveu e testemunhou nesse período?

CHICO DE ASSIS - Fui preso em julho de 1970, torturado durante cinco dias pela equipe comandada pelo facínora delegado José Silvestre, onde funcionava o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na Rua da Aurora (Recife). Depois da morte do estudante de Agronomia Odijas Carvalho, nosso companheiro militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), trucidado sob torturas, dois anos depois, eles transferiram os interrogatórios e torturas para o DOI-Codi (Departamento de Operação de Informação, do Exército), que começava a se instalar em Pernambuco, e se instalou ali no fim da Rua do Riachuelo, no final das instalações do Hospital Geral do Exército (7ª Região Militar) que servia de porão da tortura. Lá funcionava o serviço secreto do Exército, mas servia também de porão da tortura do (então) IV Exército. Lá foi morto também o estudante concluinte de Geologia, Ezequias Bezerra da Rocha, o primeiro preso, também militante do PCBR, morto estupidamente porque emprestou o carro dele a um perseguido do regime. Ele foi a primeira vítima fatal das que se sucederam.

JC - Os presos, normalmente, chegavam aos locais de tortura com capuz na cabeça para não identificar o local. Como vocês conseguiam saber que estavam em uma dependência da 7ª Região Militar, ao lado da Faculdade de Direito?

CHICO DE ASSIS - Os presos tinham por referência o carrilhão do relógio da Faculdade de Direito. Era através do badalar do carrilhão que os presos tinham referência (de onde estavam). Eu não fui tortura do no DOI-Codi, fui no Dops e depois no quartel da Aeronáutica, na II Base Aérea, oito meses depois de preso, e eu voltei a ser torturado estupidamente. Foi um clima de violência que se instalou e que se manteve durante os 21 anos de ditadura.

JC - A sua trajetória política, assim como muitos militantes, começou no movimento estudantil e já estava consolidada em 1964?

CHICO DE ASSIS - Estudei no Ginásio Pernambucano, na Rua da Aurora, à época chamado de Colégio Estadual de Pernambuco, visto como um dos melhores colégios da cidade, referência de escola pública, com professores admitidos por concurso de cátedra. Sou nascido no Recife, filho de casal de classe média, meu pai um fiscal de rendas federal e minha mãe uma professora, sem nunca ter exercido. Era um colégio que tinha uma efervescência política diferenciada dos demais, até porque tinha uma composição social muito misturada. Pela manhã os filhos das classes média e à noite muito marcada por alunos das favelas de de Santo Amaro. Foi o primeiro colégio a criar um grêmio estudantil. Meu irmão mais velho Antônio Barreto da Rocha era militante do PCB, que me influenciou muito, trazendo livros para casa. Ingressei na Juventude Comunista aos 15 anos de idade, do PCB, depois de ter lido Os Subterrâneos a Liberdade, de Jorge Amado (membro do Partidão), que conta a história dos comunistas em 35. Era uma militância que chamavam de "a esquerda festiva". Participava muito pouco de reuniões, gostava mesmo de estar na rua, na esquina da Sertã (centro do Recife), no Cine Trianon, onde tinha um café, onde se discutia os acontecimentos políticos. A direita depois começou a participar. Só a partir de 64 é que considero que a minha opção pelo Comunismo é que passou a ser real, como dirigente secundarista.

JC - Depois se afastou do PCB?

CHICO DE ASSIS - Em 64, já tinha muitas posições contrárias à linha do PCB, particularmente quanto ao caminho da revolução, que o Partidão dizia que admitia o caminho armado, mas era uma mera eventualidade. Predominava nas fileiras o pensamento de que o processo para o socialismo seria pacífico, sem nenhuma preparação especial. Divididos também sobre a composição das forças que iriam participar do processo revolucionário. O PCB achava que havia uma burguesia nacional que tinha caráter revolucionário. Caio Prado Júnior (escritor comunista) em seus estudos do livro A Revolução Brasileira destrói a tese da existência de uma burguesia nacional, a que existia tinha se formado em associação estreita com o capital financeiro internacional. Nós concordávamos com isso.

JC - Onde você estava em 1º de abril de 64?

CHICO DE ASSIS - Eu estava saindo da Agência Nacional, onde tinha o cargo de repórter auxiliar - hoje sou advogado, curso que terminei em 25 anos - e a agência funcionava no 8º andar do prédio dos Correio, na Avenida Guararapes, e a posição das tropas em direção ao Palácio (do Campos das Princesas) não era muito comum de quem ia defender o governo. Eu e meu irmão, que era diretor da agência, tínhamos estado com o governador Miguel Arraes às 23h30 da noite de 31 de março, no palácio, e ele nos disse que estava "tudo tranquilo, que o general-comandante do II Exército, Amaury Kruel, vai normalizar (resistir a Olympio Mourão Filho) e Justino (Alves Bastos, general-comandante do IV) se comprometeu em me apoiar, podem ir para casa que está tudo sob controle". Ou foi para nos tranquilizar ou para evitar um pânico generalizado. Os soldados passavam agachados e com as armas voltadas para o palácio. Na época, a comunicação era muito complicada. Ficamos acompanhando os telegramas da agência. Ao meio-dia, decidimos sair porque parecia que o governador estava sendo preso, ao invés de defendido. Ai, vinha a passeata com a maior parte de estudantes e trabalhadores da área de estivas (porto do Recife, muito ligados a Arraes), pela ponte Duarte Coelho, e eu me incorporei aos manifestantes até a esquina com a Avenida Dantas Barreto, quando sofremos as primeiras vítimas fatais do regime. Íamos ao palácio defender o governador. O Jonas Albuquerque, meu colega de escola e companheiro de poesias nos clubes literários, e Ivan Aguiar que era um estudante de Engenharia, atingidos por rajadas de metralhadoras. Foram as duas primeiras vítimas do regime que se instalava já deixando a sua marca de violência de forma expressiva no Estado. De 64 a 68, Pernambuco teve uma presença muito grande (ativismo político de resistência). E em Casa Forte tivemos o episódio degradante de Gregório Bezerra, através do facínora coronel (Darci) Vilocq que cometeu toda espécie de tortura contra o histórico militante. De 64 a 68, creio que foi o Estado que mais sofreu a violência do regime, nas ruas e nas perseguições. Tanto que as manifestações estudantis foram violentamente reprimidas aqui. Não se permitia as passeatas. No Ceará, em Fortaleza, para onde me transferi, tinha violência, mas havia atos estudantis que eles permitiam.

JC - Você participou de operações armadas?

CHICO DE ASSIS - Fizemos a dissidência do PCB, eu em julho de 68, porque defendíamos o caminho armado, enquanto o Partidão defendia o caminho pacífico (luta de massas). Tínhamos uma estrutura orgânica (no recém criado PCBR) que pressupunha um comando político-militar e um comando político. Eu participava mais do comando político, mas de vez em quando tinha treinamentos, numa perspectiva estratégica de todas as organizações que foram para a luta armada de que precisávamos ir para o campo, numa área estrategicamente definida, de difícil acesso, mas de muita movimentação social, o foco de guerrilha rural que iria depois transformar no exército popular para derrubar o exército da ditadura. Era uma coisa meio delirante, hoje vejo assim.

JC - Como começou a cair o PCBR?

CHICO DE ASSIS - O PCBR começou a sofrer primeiras baixas mais expressivas em janeiro de 1970, com uma parte de sua direção nacional caindo em janeiro, alguns foram presos aqui. Começamos a fazer um rodízio de direção. Fui designado a ficar aqui porque era o menos queimado, só respondia a um processo que me condenou a um ano de prisão. Alguns já estavam condenados à prisão perpétua, o Alberto Vinícius, Carlos Alberto Soares e João Baltar, que foi para o exílio e mora no Canadá até hoje, e eu fiquei para receber companheiros que estavam vindo do Rio de Janeiro, perseguidos depois da queda do comando por lá.

JC - Como se deu a sua prisão?

CHICO DE ASSIS – Em julho de 1970 fui preso em Afogados (bairro), uma das únicas que não foram resultados de delações e o abertura de companheiros sob tortura. Montei mal o aparelho, perto do club Sargento Wolff. Aluguei a casa com um quintal grande, para facilitar fugas, mas conhecia a área e ela era muito dominada pelos militares. Eu e Nancy Mangabeira Unger ocupamos o local como um casal, filhos de latifundiários, mais a Vera Rocha (cearense). Nosso vizinho do lado esquerdo era um coronel da Aeronáutica e o do lado direito era do Exército. Nossa presença despertou suspeitas (devido à movimentação na casa), e provavelmente foram os vizinhos que nos denunciaram. Vera ia ser a caseira de um próximo sequestro que íamos fazer, tínhamos definido o cônsul japonês. No primeiro momento, o cônsul americano, o que sustentei nos meus depoimentos (pós-prisão). Isso acabou me favorecendo, porque o cônsul passou a acompanhar os depoimentos, e a Nancy Mangabeira (irmã do economista Roberto Mangabeira Unger) tinha a dupla nacionalidade, o pai dela era norte-americano. Meu primeiro depoimento foi o único que consegui registra os nomes dos torturadores. Eu tive sete processos. Nos demais se limitavam a anotar “foi submetido a maus tratos”. Quando eles montaram a operação para nos prender, eles foram primeiro averiguar, dia 15 de julho. Era o delegado e torturador Carlos de Brito, quem começou minhas sessões de tortura. Ele fingiu ser funcionário da Celpe que foi medir o contador. Eu já era conhecido, embora não tão procurado. No dia seguinte, dia da padroeira Nossa Senhora do Carmo, já cercaram e metralhando a casa. Chamavam-nos de terroristas. Decidimos resistir, tentar sair do cerco. Saímos pelos fundos, atirando, com dois revólveres 38. Nancy foi atingida por bala fuzil, estraçalhou o polegar direito e estilhaçou-se no fígado. Ela sofreu várias operações para se recuperar. Aí, eu e Vera decidimos nos entregar para tentar salvar Nancy.

JC - E o processo de torturas começa a partir da rendição?

CHICO DE ASSIS – Já me levaram na porrada, me colocara dentro de uma Veraneio (camioneta), ensaiando o que iria viver nos cinco dias que se seguiram no Dops. No terceiro dia, foi uma sessão de 9 às 17 horas. Eu me guiei pelos horários do café. A diferença do Dops para o DOI-Codi é que no primeiro as dependências envelhecidas do prédio permitiam que os presos escutassem e até vissem a tortura de companheiros, por isso há testemunhas, enquanto no segundo a estrutura era mais de isolamento. O carrilhão da Faculdade de Direito é que permitia saberem onde estavam. Só vim a me sentir como um preso mesmo quando fui transferido para a (penitenciária) Barreto Campelo, em Itamaracá, que tinha todos os sinais de um campo de concentração, com cercas de arame farpado. À frente da penitenciária havia um fascista, o major (PMPE) José Siqueira, que depois foi deputado estadual, que vivia obcecado com a possibilidade de Cuba invadir a ilha para nos retirar e em pensar formas de nos perseguir. Uma guerra psicológica sistemática. Em Itamaracá, fizemos seis greves de fome.

JC – Mas, antes de irem para a Barreto Campelo, vocês passaram pela Casa de Detenção do Recife.

CHICO DE ASSIS - Sim, mas lá, apesar do contorno repressivo, não fizemos nenhuma greve. O diretor, coronel Olímpio Ferraz, da velha guarda da polícia, tinha vinculações políticas com a Assembleia Legislativa, reduto de Floresta (Sertão). Ele costumava dizer “com vocês eu não mexo, porque o problema de vocês é com a história”. É como se dissesse “vocês estão aqui hoje, amanhã eu não sei”. Acho que uma premonição, porque não estamos no poder, mas temos parcelas do poder nas mãos dos que eram “os terroristas”. Ele também já tinha sido reeducado pelo Gregório (Bezerra), que tinha passado seis anos preso lá. O coronel manteve a comida crua, que era uma das reivindicações fundamentais da gente (presos políticos), porque a comida da prisão era intragável. Feijão com tapuru, a carne era uma pelanca velha. Os presos comuns aguentavam porque tinha acesso à maconha. Com a comida crua, os prisioneiros políticos tinham as tarefas divididas para cozinhar e lavar. Tínhamos até acesso a livros, fazíamos grupos de estudos e de críticas de nossas práticas.

JC - Cinquenta 50 anos depois do golpe, mais de 40 depois do AI-5 e da fase dos "anos de chumbo (1968-1974), estamos em uma democracia plena?

CHICO DE ASSIS - Vivemos, hoje, numa democracia política plena. Não temos uma democracia social, não temos ainda uma democracia econômica, mas a democracia política nós temos, todos temos a liberdade de pensar e nos expressar, mas até hoje marcas profundas daquela época nós temos. Eu, particularmente, ainda hoje, não tenho tranquilidade - quando entro em um restaurante - de sentar em uma mesa com as costas voltadas para a porta da frente. Era uma prática que eu tenha para evitar o que aconteceu com dezenas de companheiros, presos de surpresa por policiais. É uma psicose que ficou como registro daquele período. Quando se aproxima qualquer indivíduo suspeito de um grupo que você está, a primeira coisa que vem à cabeça, principalmente daqueles que participaram (da luta armada), é a lembrança daquele período triste do nosso País.

JC - Quais as marcas de 64 que não foram ainda superadas pela sociedade, além da falta de esclarecimento sobre os mortos e desaparecidos?

CHICO DE ASSIS – Os resquícios nas estruturas institucionais de poder. O caso do operário Amarildo (no Rio, em 2013), que foi uma repetição literal do que faziam conosco (no regime militar) em todos os detalhes. Prenderam, sequestraram, torturaram, tentaram levar a um hospital, provavelmente para ver se o salvavam, como não salvaram foi dado como desaparecido. Tentaram acobertar com a mesma conversa da nossa época. Por exemplo, Rubens Paiva (deputado do Rio), foi preso, torturado e morto, depois disseram que numa transferência tinha sido sequestrado pelos terroristas. Com Amarildo, disseram que ele tinha sido sequestrado pelos traficantes. Foi preciso que um repórter tivesse a ideia de salvar um GPS que permitiu a descoberta da trama e o envolvimento de 25 policiais. Um fato como esse demonstra como sobrevivem resquícios da repressão nesses aparelhos (militares). A Lei se Segurança Nacional não foi ainda revogada.

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