• Em vez de aceitar ser punido pela transgressão, o juiz julgou que ele, sim, é que podia punir quem ousou puni-lo, pois já fizera o mesmo com um guarda rodoviário em 2009
- O Globo
Podia ser um episódio da série de humor non sense da turma do Porta dos Fundos, que costuma simular a vinda de Deus à Terra em carne e osso para resolver prosaicas questões do dia a dia. Ora é o apelo apaixonado da “outra”, que quer fazer “o Valter largar a esposa” para ficar com ela e Ele se irrita porque deixou de resolver o problema da fome na África para atender a esse chamado. Ora é o torcedor desesperado a quem Ele confessa sua impotência: “Não posso fazer nada pelo Botafogo”. Ou a dona de casa que quer uma solução divina para que o bolo que está fazendo não fique solado.
Para quem reclama da Avenida Brasil depois das 7 da noite, Ele alega: “Não sou Moisés nem Eduardo Paes, não tenho ingerência no trânsito”. De cabelos compridos, longas barbas e bata branca, Ele aparece sempre mal-humorado em consequência da sobrecarga de trabalho, ou seja, dos insistentes pedidos terrenos de ajuda.
O episódio a que me referi no começo aconteceu há três anos e agora teve uma solução inesperada. Nele, Deus não aparece, ou aparece disfarçado, mas é evocado e confundido com um juiz. Em 2011, um homem foi parado em uma blitz da Lei Seca na Zona Sul do Rio sem carteira de habilitação e com o carro sem placa e sem documentos. Infração grave. A agente da Operação Luciana Silva Tamburini puniu-o multando e ordenando o reboque do veículo. Houve reação do acusado, os dois se desentenderam e quando ele se identificou com o tradicional “sabe com quem está falando?”, revelando sua posição privilegiada, ela replicou dizendo que ele “era juiz, mas não Deus”, e que, portanto, devia se sujeitar às leis dos homens.
A diferença estabelecida pela servidora do Detran foi recebida como ofensa.
Provavelmente para provar o quanto ela estava errada na sua afirmação, já que ele de fato se achava pairando acima do bem e do mal, numa esfera superior, o juiz João Carlos de Souza Correa deu-lhe voz de prisão. Quer dizer: em vez de aceitar ser punido pela transgressão, julgou que ele, sim, é que podia punir quem ousou puni-lo, pois já fizera o mesmo com um guarda rodoviário que o abordara em 2009. Souza Correa conseguiu na Justiça o que queria. A sentença de um desembargador dando-lhe razão acaba de condenar a herege a pagar uma indenização de R$ 5 mil sob a acusação de que desacatara e debochara da autoridade. Além da multa de quase o dobro de seu salário, que está sendo coberta por uma solidária “vaquinha virtual” na internet e já arrecadou mais de R$ 10 mil, ela aprendeu a lição de que questionar a condição divina de certos humanos é um pecado que pode custar caro.
Zuenir Ventura é jornalista
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