Biden
anunciava uma volta à normalidade democrática que sossegou nossos corações,
como o triunfo dos Aliados
Uma
irmã de minha avó, a quem chamávamos de tia Sinhazinha, foi enfermeira militar
na Força Expedicionária Brasileira (FEB), lutando nos campos da Itália durante
a Guerra no final dos anos 1940. Essa minha tia-avó, a tenente Olímpia
Camerino, cuidava com afeto dos filhos de suas sobrinhas cada vez que a
visitávamos depois de seu retorno vitorioso ao Brasil. Tia Sinhazinha nos contava
então, com modéstia e simplicidade, histórias passadas durante a guerra que me
fascinavam. Numa delas, cercada numa colina italiana por força inimiga muito
mais numerosa, nossa tropa foi salva por um general esperto que mandou espalhar
que os inimigos estavam doidos para se render, por pura exaustão. Como estavam
sendo informados de que os italianos não aguentavam mais e queriam se entregar,
nossos rapazes multiplicaram a valentia e derrotaram o bando de Mussolini que,
ainda que majoritário, acabou se rendendo.
Me
lembrei de tia Sinhazinha e de suas histórias durante a emocionante posse de
Joe Biden, o líder sereno, e Kamala Harris, a vice afro-asiática, no Capitólio
norte-americano. Depois de quatro anos de voluntarismo, caos autoritário e
suplício trumpista, o novo presidente anunciava uma volta à normalidade
democrática que sossegou nossos corações, como o triunfo dos Aliados há mais de
75 anos. Em 1945, a vitória militar era sobre a Alemanha, a Itália e o Japão, o
famigerado Eixo. Mas se tratava sobretudo do fim do nazismo, que ameaçava o
mundo com sua barbárie organizada e desumana, derrotado por ideais de
fraternidade sem preço, liberdade individual e eventual igualdade. E pelo
progresso que o mundo haveria de conhecer a partir dali.
Os Estados Unidos eram nosso jovem herói nessa saga, o país que acendia esse sol em nossas vidas, o responsável por essa luz que trouxe com ela os brinquedos e os objetos domésticos de plástico, as máquinas movidas a combustível fóssil, uma cultura universal imposta por filmes de cinema e música popular que ignorava o particular de cada um de nós. Nascia uma visão nada cínica da política, a fantasiosa esperança numa república democrática liberal, formulada e fundada quando nada do tipo existia no mundo e, dois séculos depois, ainda era original. O alvorecer era nosso.
Depois
tudo isso foi passando, nossos sonhos foram sendo esmagados por uma Guerra Fria
polarizada e triste, em que o Brasil também se dividiu radicalmente. Acho que
tínhamos saudades de cowboys de verdade e bailarinas de mentira, mas era
fraqueza revelar. Até que Joe Biden nos acorda para um novo sonho, a anunciar
que nunca mais haverá supremacia branca, racismo e desigualdade de qualquer
espécie, que nunca mais ninguém será discriminado por orientação sexual e
identidade de gênero, nunca mais serão deportadas crianças imigrantes ou seus
pais, nunca mais tirania do dinheiro e pandemia com mortes que não provam nada.
(Como escreveu outro dia nosso Roberto DaMatta, “é doloroso ver a morte, que
devia ser uma exceção, se tornar pavorosa rotina”.) Este é o fim da guerra
incivil, “the UnCivil War” — a preciosa democracia, como sempre a sonhamos,
prevaleceu.
“Política
não precisa ser fogo que tudo destrói”, disse Biden no discurso de posse, “não
precisa levar à desunião”. Ele jurou defender a verdade e derrotar a mentira
(segundo analista de respeito, parece que Donald Trump, em 4 anos, difundiu
cerca de 30 mil mentiras). “Nossa história tem sido uma luta incessante entre o
ideal americano de que todos somos criados iguais e a feia realidade do
racismo, do nativismo, do medo e da demonização que há muito tempo nos divide.
(...) Vamos abrir nossas almas em vez de endurecer nossos corações.” E
completa, quase épico: “Uma turba selvagem tentou usar a violência para silenciar
a vontade do povo. Não aconteceu, nunca vai acontecer. Nem hoje, nem amanhã,
nem nunca. Nunca!”.
Jornalista
perguntou à poeta afro-americana Amanda Gorman, 22 anos, se alguém da equipe de
Biden a havia orientado sobre o poema que escrevera e que leria durante a
cerimônia de posse. Ela disse que a única indicação que recebera tinha sido não
tratar os adversários políticos com ódio. Amanda leu durante a posse versos em
que dizia: “Onde podemos achar luz nesta sombra que não acaba nunca?”. Sem
conhecer sua pergunta, o presidente eleito a respondeu com um discurso cujos
temas são a esperança, a união e o esforço pela democracia.
O que pensar de Joe Biden para o futuro do mundo e dessa esperança que a política americana atira agora sobre nós, depois de tantos anos de desilusões?
Nenhum comentário:
Postar um comentário