Para
trumpistas, a ‘nação verdadeira’ foi sitiada pela massa de ‘estrangeiros’
A
invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro, não impediu a certificação da
vitória de Joe Biden — nem o espetáculo parlamentar de fundação do Partido de
Trump. Na retomada dos trabalhos do Congresso, mais de cem deputados
republicanos e meia-dúzia de senadores ainda insistiram em contestar os
resultados eleitorais. À frente deles, o senador Ted Cruz, do Texas, invocou
como precedente o Compromisso de 1877. A referência sintetiza o programa do
Partido de Trump.
A
eleição presidencial de 1876 foi travada entre o republicano Rutherford Hayes e
o democrata Samuel Tilden. Na época, os republicanos eram o “partido da União”,
dos vencedores da Guerra Civil (1861-65), e os democratas eram o “partido da
Confederação”, das elites sulistas derrotadas. Tilden triunfou no voto popular,
mas o desenlace no Colégio Eleitoral dependia de 20 delegados de quatro estados
contestados. Depois de uma longa disputa judicial e parlamentar, concluiu-se
por uma barganha. O Compromisso de 1877 deu a Casa Branca a Hayes, em troca da
retirada das forças militares que ocupavam os estados da antiga Confederação.
À primeira vista, o paralelo entre as eleições de 1876 e 2020 não tem sentido. Na primeira, de fato verificaram-se irregularidades e fraudes generalizadas nos quatro estados decisivos. Na segunda, meticulosas recontagens e inúmeras decisões judiciais confirmaram a absoluta lisura do pleito. Cruz, porém, invocou o Compromisso de 1877 para delinear uma plataforma política: o Partido de Trump almeja a retirada das tropas da Lei dos Direitos de Voto que, em 1965, ocuparam o conjunto dos EUA.
Bandeiras
confederadas, o símbolo do supremacismo branco, tremularam no comício de Trump
que precedeu a invasão do Capitólio. O Compromisso de 1877 encerrou a
Reconstrução: o parêntesis aberto em 1865 de intervenção do governo central na
antiga Confederação. Logo, as velhas oligarquias retomaram o poder nos estados
sulistas e formularam as leis de segregação racial. Com base na conciliação
federativa, uma catarata de regulamentos estaduais reduziu a pó o direito de
voto dos negros inscrito na 15ª Emenda (1870).
Tilden,
o derrotado de 1877, pertencia ao Partido Democrata, que representava as
oligarquias sulistas. O movimento pelos direitos civis, de Martin Luther King,
inverteu o cenário. As leis dos Direitos Civis (1964) e dos Direitos de Voto
(1965) foram patrocinadas por governos democratas. O Partido Republicano
converteu-se no “partido do sul” — mas manteve-se longe da bandeira confederada
e do supremacismo branco. Trump promove a ruptura com a tradição de Lincoln.
Sua facção republicana sonha anular as garantias legais da igualdade de
direitos, restaurando a nação original, de colonos brancos e protestantes.
Só
uma estreita minoria de idiotas hipnotizados pelas lendas conspiratórias de
mídias sociais acredita, de fato, que Biden triunfou graças a uma fraude
eleitoral. A grande mentira, porém, encontra tradução diferente na extensa base
de fiéis trumpistas. Trump obteve a maioria do voto branco, mas perdeu devido
ao peso eleitoral dos negros e latinos. É isso que o núcleo de eleitores
trumpistas interpreta como fraude. Para eles, a “nação verdadeira” foi sitiada
pela massa de “estrangeiros” de “sangue” latino ou africano.
No
seu mandato único, Trump concentrou-se em mudar a composição da Suprema Corte,
indicando juízes “originalistas” — ou seja, adeptos da interpretação literal da
Constituição escrita pelos fundadores. A Constituição “original” não abrange as
leis dos direitos civis. Convenientemente relida, poderia autorizar as
legislaturas estaduais a restringir a inscrição de eleitores de minorias. Eis a
meta principal do Partido de Trump.
O Partido de Trump, uma facção do Partido Republicano, é um movimento restauracionista do nacionalismo branco. As correntes supremacistas e as milícias nativistas que circulavam na periferia do sistema político encontram nele uma grande organização unificadora. A violência política da extrema-direita transforma-se em elemento central e perene da política americana. É esse o legado de Trump.
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