O Estado de S. Paulo.
Quando o orçamento é tratado como feira livre, perde-se a capacidade de controle e de resposta aos anseios da população
No último dia 13, ao ser entrevistado no
programa Roda Viva, da TV Cultura, falei à jornalista Vera Magalhães que
estávamos diante de uma política fiscal destrambelhada. O teto de gastos, única
âncora ativa, foi alçado. Além disso, o chamado orçamento secreto, revelado
pelo Estadão, não teve reação institucional à altura. Em 2022, haverá até R$ 36
bilhões para gastos pulverizados. É a lógica do Silvio Santos no orçamento
público: “quem quer dinheiro”?
A Instituição Fiscal Independente (IFI) calculou que o rombo no teto de gastos se combinou com o calote nos precatórios e nas sentenças judiciais para abrir espaço fiscal de quase R$ 118 bilhões em 2022. Esse número poderá ser um pouco menor, a depender da inflação de 2021 (que conheceremos no início de janeiro). De todo modo, contabilizados os gastos já anunciados ou aprovados (caso do Auxílio Brasil), sobrariam cerca de R$ 36 bilhões para despesas extras.
Isso explica a correria com projetos que
aumentam o volume de recursos para os partidos e que tais. A sanha para gastar,
da qual tratei em várias ocasiões neste espaço, ganhou corpo com a PEC dos
Precatórios (Emendas Constitucionais – ECS n.º 113 e n.º 114). A motivação
nunca foi o gasto social, mas, sim, a abertura de espaço orçamentário para
jogar dinheiro público para o alto.
O orçamento previsto inicialmente para o
Bolsa Família era de cerca de R$ 35 bilhões para 2022. A polpuda “xepa da PEC”
equivalerá a mais do que o orçamento inteiro desse programa. Se a inflação do
fim do ano ficar abaixo da considerada pela IFI neste momento (10,4%), ainda
assim sobrariam cerca de R$ 26 bilhões (e não R$ 36 bilhões). Mas como serão
gastos esses recursos?
As emendas de relator-geral abarcaram, nos
últimos anos, as mais variadas demandas, inclusive pedidos do próprio Poder
Executivo. Há gastos meritórios nessa salada de recursos, sim, mas o ponto
central é a falta de transparência e de critério na sua distribuição. Trata-se
de dinheiro público. O tratamento deve ser o mais aberto possível.
Se há demanda – legítima – por maior
ingerência no orçamento, o Legislativo já tem dois instrumentos
constitucionais: as emendas individuais (EC 86) e as emendas de bancada
parlamentar (EC 100). Os puxadinhos do relator-geral são o maior disparate de
que se tem notícia em matéria de orçamento público na história recente. E já
ocorrem há vários anos (ainda que, antes de 2019, em menor proporção).
No relatório final da Comissão Mista de Orçamento
(CMO) do Congresso, há R$ 16,5 bilhões para emendas de relator-geral. Para
isso, no relatório, revisam para baixo as projeções de gastos obrigatórios,
confirmando o uso de parte do espaço escondido nas estimativas mais altas do
Executivo. Essa confusão era previsível. Fiz o alerta.
Ou bem se moderniza o processo orçamentário
ou retrocederemos à era das cavernas em termos de contabilidade pública. Todos
os avanços promovidos pelas reformas dos anos 1980 e 1990 – a exemplo da
extinção do orçamento monetário, do controle da inflação, da Lei de
Responsabilidade Fiscal, da adoção da tecnologia de informação na execução e no
controle dos gastos públicos, dentre outros – poderão escoar pelo ralo. É
difícil construir e fácil botar tudo a perder.
Muito se discutiu sobre o calote nos
precatórios e a mudança do teto para poder cumpri-lo: pedaladas fiscais. Mas o
quadro é mais grave. Essa forma e esse ritmo de alteração da Constituição, como
quem escreve em papel de pão, torna instável – e pouco previsível, portanto – o
quadro geral das contas públicas.
Quem vencer as eleições de 2022 terá
pouquíssimo tempo para iniciar a reconstrução. O risco de romper o teto de
gastos ou de uma virada de mesa nas regras do jogo, que se costumava associar a
alguns cenários possíveis para as eleições de 2022, já não existe. O salto
duplo carpado foi a PEC dos Precatórios.
O desafio, agora, é pensar em como
harmonizar o arcabouço fiscal, reestruturar o teto de gastos e planejar as
ações urgentes de políticas públicas na área social. O País está em frangalhos,
o mercado de trabalho não dá sinais de melhora efetiva e as projeções para o
PIB do ano que vem circundam 0,5%.
O orçamento é o esqueleto do Estado. Sem
ele, as leis e a Constituição não param de pé. Quando o processo orçamentário é
tratado como uma feira livre, com regras ad hoc e práticas pouco transparentes,
perde-se a capacidade de controle, de prestação de contas e de resposta aos
anseios da população.
A chuva de dinheiro em gastos espalhados
poderá confirmar as piores expectativas. O meteoro dos precatórios e o gasto
social foram desculpas perfeitas para emprestar ares de correção a esse
destrambelho. Para ter claro, nem um centavo foi cortado para viabilizar os
gastos novos. A responsabilidade fiscal, também sob esse aspecto, foi
gravemente abalada.
No auditório do Silvio Santos, o dinheiro é
dele. Ele joga para o alto quando lhe dá na telha. No orçamento público, os
recursos são da coletividade. Sua distribuição, de acordo com as leis, deveria
ser sagrada.
*Diretor-executivo e responsável pela
implantação da IFI.
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