Correio Braziliense
O principal beneficiado da
eleição de Boric é o ex-presidente Lula, favorito em todas as pesquisas de
opinião. Bolsonaro, porém, não se sente derrotado estrategicamente
A esquerda venceu as eleições no Chile com
a eleição do ex-líder estudantil e jovem deputado Gabriel Boric, de 35 anos, o
mais jovem político a presidir o país em toda a sua história. Foi uma eleição
marcada pela polarização política, na qual o candidato da Convergência Social,
apoiado pelo Partido Comunista chileno, derrotou o ultradireitista José Antônio
Kast, do Partido Republicano, um fanático admirador do ex-presidente Augusto
Pinochet, o ditador sanguinário que liderou o golpe militar de 1973, no qual o
presidente Salvador Allende se suicidou, em meio ao bombardeio do Palácio La
Moneda por aviões de caça da Força Aérea chilena. A eleição foi de virada: no
primeiro turno, Boric havia ficado em segundo lugar.
A nova situação chilena parece retomar o fio da história interrompido com o golpe de 1973, quando Allende representava o sonho de um socialismo democrático. É como se a história tivesse sido “descongelada” após quase 50 anos. Embora o atual presidente Sebastian Piñera e a socialista Michelle Bachelet tenham protagonizado as disputas políticas direita x esquerda dos últimos 16 anos, ambos são políticos moderados, governaram em aliança com os liberais. Boric se apresentou no primeiro turno como uma candidatura de viés muito esquerdista. Entretanto, moderou o discurso no segundo e se aproximou dos socialistas, liberais e democrata-cristãos para derrotar a extrema-direita.
Gosto da expressão “descongelar” por causa
de uma entrevista do filósofo alemão Jürgen Habermas, logo após a queda do muro
de Berlim e o fim da União Soviética, que marcaram o colapso do chamado
“socialismo real” europeu. Habermas comparou a Europa do fim da Guerra Fria a
uma fotografia — como aquela de Roosevelt, Stálin e Churchill, em fevereiro de
1945, na Crimeia —, que foi “descongelada” e virou um filme de longa metragem,
como se a história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida.
“Ninguém me convence de que o socialismo de
estado seja, do ponto de vista da evolução social, ‘mais avançado’ ou ‘mais
progressista’ do que o capitalismo tardio. (…) São senão variantes de uma mesma
formação societária. (…) Temos tanto no leste como no oeste modernas sociedades
de classe, diferenciadas em Estado e economia”, disse Habermas à época (Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989). A história das nações europeias
anterior à II Guerra Mundial, de fato, fora “descongelada”, despertando velhos
conflitos econômicos e de fronteiras, além de forças políticas muito reacionárias
que estavam adormecidas no Leste Europeu, desde a ocupação soviética,
principalmente na Hungria, na Ucrânia, na Polônia e na Romênia.
No primeiro turno, Boric foi um duro
crítico da democracia chilena pós-Pinochet, que governou com as baionetas de
1973 a 1990. Segundo o novo presidente chileno, a continuidade do modelo
liberal deixou as classes média e baixa endividadas, sem condições de arcar com
os custos da educação, da saúde e da previdência privada. Sua proposta é um
Estado de bem-estar social ao estilo da social-democracia nórdica: Dinamarca,
Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. A nova Constituição em elaboração, de
certa forma, cria condições para ultrapassagem do modelo econômico neoliberal
de Pinochet herdado pelos governos democráticos. Em contrapartida, no primeiro
ano de governo, a inflação fora de controle complica muito a execução do
projeto de Boric, que também precisa formar uma nova maioria no Congresso.
Polarização política
Em tempos geopolíticos, a vitória de Boric
consolida uma guinada à esquerda no Cone Sul, que já havia sido iniciada com a
eleição do justicialista Alberto Fernández na Argentina, hoje o mais importante
aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na região. Também aprofunda o
isolamento político do presidente Jair Bolsonaro, crescente desde a eleição do
atual presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. Pode virar uma
espécie de El Niño político , o fenômeno atmosférico oceânico que aquece as
águas superficiais do Pacífico tropical e provoca alterações climáticas na
América do Sul, sobretudo no Brasil, e outras regiões do mundo, com
mudanças no regime de ventos e de chuvas.
O principal beneficiado da eleição de Boric
é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, favorito absoluto em todas as pesquisas
de opinião, que pode até vencer as eleições no primeiro turno. Em termos
econômicos, Lula ainda é uma esfinge. Candidato à reeleição, Bolsonaro tem
altos índices de rejeição, desmantelou as políticas sociais do governo, perdeu
o controle da economia, mas ainda não se sente derrotado estrategicamente.
Aposta as fichas na força bruta do próprio governo, como forma mais concentrada
de poder, e no Auxílio Brasil, o novo programa de transferência de rendas para
14,5 milhões de famílias, no valor de R$ 400 mensais; mantém coesa a sua base
de apoio de extrema-direita e evangélica e aposta na polarização política, para
se beneficiar do antipetismo da classe média e do conservadorismo popular. Mas
disso vamos tratar na próxima coluna.
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