Correio Braziliense
Em seu posfácio
ao livro “Um Tempo para não Esquecer”, o doutor José de Jesus Camargo diz que a
diplomacia pode ter perdido um grande talento, mas a medicina ganhou, quando
Margareth Dalcolmo, a autora, optou pela carreira médica. As letras também
ganharam, porque o livro une conhecimento médico ao talento de escritora. Não é
por acaso que esta médica começa sua apresentação, lembrando que antes de
iniciar os artigos do livro “recorreu a releituras seminais em minha formação”
para dar o testemunho de um tempo que ficará para sempre. As páginas desses 81
artigos, que se unem por um fio condutor, descrevem o que vivemos, no
inesquecível período entre abril de 2020 e novembro de 2021.
Logo no início, Margareth lembra como começaram “estes tempos duros que marcaram, indelevelmente nossas vidas e que, podemos dizer, deram início ao século XXI”. Sua formação médica aparece na descrição da doença e seu enfrentamento, a formação literária surge em dezenas de citações apropriadas, não apenas de cientistas e médicos, também de escritores, filósofos, dramaturgos.
No primeiro
capítulo, pergunta o que aprendemos. Foram esses meses de epidemia que fizeram
os seres humanos constatarem que nosso futuro depende da ciência, da
solidariedade social e da responsabilidade política; que o mundo é uma nação de
7,5 bilhões de pessoas integradas por cima das fronteiras nacionais, embora
separadas por fronteiras sociais; que estamos todos conectados, não importa
onde estejamos. Aprendemos também que nem todos pensam assim: há muitos que
negam o papel da ciência e rejeitam a terra-pátria, como Edgar Morin chama o
mundo atual. Até o abril em que o livro começa, esses eram conceitos abstratos,
de filósofos e geógrafos; a epidemia colocou-os na consciência de bilhões de
seres humanos e adotou-os como pilares do futuro: para construir um mundo
melhor e mais belo.
Margareth
Dalcolmo mostra isso em seus curtos e profundos artigos, misturando alto
conhecimento de epidemiologia, com vasta cultura e forte sensibilidade social.
Ela ajuda a ver a pátria do século XXI formada pela humanidade, seus valores
humanistas e concepções do mundo, graças
à ciência; mostra a necessidade de uma ética, sobretudo entre políticos, capaz
de aceitar as regras da ciência e usá-la a serviço dos interesses da humanidade.
Quando fala da
consciência social da população brasileira ao se vacinar, deixa implícito que,
no Brasil, a cultura venceu a política, ao nos transformar em um dos países com
maior índice de vacinação, apesar de ter o governo mais negacionista entre todos
no mundo atual.
“Um Tempo Para
Não Esquecer” faz lembrar como será diferente o Brasil quando tivermos
consciência social pró-educação, vista como a mãe de todas as vacinas: contra a
permanência da pobreza, a desigualdade, a ineficiência e o negacionismo. O
capítulo sobre a aventura da ciência pode ser especial para despertar os jovens
a descobrirem a beleza e o poder da ciência.
No capítulo
“Depois da Delta, a Épsilon”, Margareth alerta para as epidemias futuras, por
vírus e bactérias ainda não conhecidas. Nos faz lembrar a maior das epidemias
já em marcha: o meteoro interno que, por falta de ética, usa a inteligência
para depredar o meio ambiente e concentrar os benefícios sociais e econômicos
do progresso, provocando uma nova extinção que ameaça a sobrevivência do homo
sapiens.
Além do alerta, o
livro acena para o caminho a seguir: “Esperamos que, dessa fusão entre o
engajamento público e a comunidade científica, como o caminho mais democrático
e sereno, seja possível vencer o reducionismo que distingue ciência e política
e a cética encruzilhada entre certo e errado”. A última frase do livro diz:
“vivemos um bom momento para se pensar o homo sapiens e o seu lugar no mundo”.
Essa manifestação de otimismo no meio da epidemia lembra o Imperador Carlos IV,
criando a Universidade de Praga em um dos anos mais trágicos da peste negra.
As epidemias
dizimam populações, desagregam economias, desesperam povos; de positivo ficam
as obras literárias de seu tempo: são as flores da epidemia. Em verso, Quintana
resume, “e eis que veio uma peste e acabou com todos os homens mas em
compensação ficaram as bibliotecas”.
O livro de
Margareth Dalcolmo faz parte desse jardim, onde estão livros de Camus,
Boccacio, Defoe. Por isso, é preciso universalizar suas especificidades nacionais
e traduzi-lo a outros idiomas, para mostrar ao mundo o tamanho de nossa
tragédia e o nível de nossa literatura ao descrever um “tempo para não
esquecer”.
*Professor
Emérito da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão Internacional da
Unesco para o futuro da educação
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