O Estado de S. Paulo
O jornalismo não está em crise porque os líderes autoritários, que o xingam de ‘lixo’ (à moda dos nazistas), conseguiram enfim derrubá-lo
Há dois anos, em janeiro de 2020, o
presidente da República olhou para um pequeno grupo de jornalistas no portão do
Palácio da Alvorada e bradou: “Vocês são uma espécie em extinção”. Seus
apoiadores, amontoados bem ao lado, riam e babavam, em agitações libidinais. O
chefe de Estado prosseguiu: “Acho que eu vou botar os jornalistas do Brasil,
éééé..., vinculado (sic) ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”. Mais
risadas ao fundo. A voz do governante exalava um júbilo azedo. Ele falava como
se comemorasse uma bonança e, no seu estilo bestial de celebrar, disparava
agressões aos profissionais da imprensa que acorriam à entrada do Alvorada para
registrar seus descalabros diários.
Naqueles tempos, estava em alta o famoso “cercadinho”, uma espécie de curral improvisado ao lado da portaria do palácio. Religiosamente, a autoridade máxima do País ofendia aos gritos homens e mulheres dedicados a apurar notícias para informar a sociedade. Eram recorrentes os xingamentos sexuais, chulos e repugnantes. Ele exultava, em êxtase com o papel que inventara para si mesmo, qual seja, o de profeta da aniquilação de uma “espécie”.
Passados dois anos, o “cercadinho” não tem
mais a projeção que teve, mas o tom presidencial segue idêntico. Em 2020, ele
afirmava que “quem lê jornal está desinformado”; agora, mantém a pregação. Aos
seus olhos baços, não há diferenças substantivas entre os diários sérios, com
CNPJ, endereço e telefone, e os centros semiclandestinos de inspiração fascista
que produzem e distribuem fake news temperadas com mensagens racistas,
misóginas e odientas. Aos primeiros, trata como inimigos, e, aos segundos, já
se referiu como “a mídia a meu favor”. Na substância, porém, segundo seu
discernimento primário, só o que mudaria entre uns e outros é a “opinião” ou a
“narrativa”. No mais, seriam equivalentes uns dos outros.
Nada poderia ser mais obtuso. O presidente
não compreende o que seja método de apuração da realidade, assim como não
alcança o estatuto lógico da fiscalização pública do poder. Não sabe distinguir
entre o juízo de valor e o juízo de fato – não sabe e não tem como saber, pois
o modelo de poder que ele representa abomina essa distinção. Vai daí que, em
seus sonhos, imprensa boa é imprensa extinta.
De nossa parte, sabemos que os sonhos desse
personagem correspondem aos nossos pesadelos mais apavorantes. Pior ainda:
muitos desses pesadelos vêm se tornando reais. A imprensa vive tempos
sufocantes. Títulos de grande reputação fecham as portas no Brasil e em muitos
outros países. O jornalismo local está em declínio. Em dezembro passado, o
Atlas da Notícia, do Projor, registrou o encerramento das atividades de 17 veículos
brasileiros de médio ou grande alcance em quatro anos.
Surge, então, a pergunta: quer dizer que o
presidente está certo e que a atividade jornalística entrou em extinção? A
resposta é negativa. Não, claro que não. O inquilino do Palácio da Alvorada não
tem razão em nada do que fala – aliás, a palavra “razão” não encontra aderência
à sua figura. O que ocorre é que existe, efetivamente, uma crise generalizada
nas redações, que a cada dia ficam menores, mais pobres e mais fracas, e isso
faz parecer que o tal sujeito tem razão, mas ele não tem.
Não está em curso nenhuma “extinção”. Ao
contrário, há registros animadores vindos de novas formas de jornalismo digital
(como o Poder360 ou o Nexo Jornal) e de organizações jornalísticas sem fins de
lucro (Agência Pública, entre outras). Só o que acontece, aí sim, é que o
cenário geral é desalentador – a tal ponto que, quando alardeia o ocaso desta
profissão, o presidente encontra respaldo em fragmentos da realidade, e se
regozija. Fora isso, não sabe o que diz.
Tanto não sabe que não se sabe efeito – e
não causa – da quadra medonha que atravessamos. Definitivamente, o
esmorecimento das redações não brota das palavras que ele pronuncia ou da
vontade liberticida que ele encarna, mas o contrário: ele é que é o produto do
enfraquecimento da imprensa.
O jornalismo não está em crise porque os
líderes autoritários, que o xingam de “lixo” (à moda dos nazistas nos anos 1920
e 1930), conseguiram finalmente derrubá-lo. O jornalismo está em crise porque
foi alcançado pela combinação de três fatores tão profundos quanto adversos: a
transformação estrutural de seus padrões tecnológicos (que não soube
acompanhar), a obsolescência de seus modelos de negócio e o fosso que se abriu
entre a imprensa e os processos decisórios da democracia (imprensa e democracia
se distanciaram).
As correntes fascistas do presente
cresceram no vazio informativo e institucional deixado por essa crise, e aí
criaram a indústria da desinformação. Essas correntes, que dominam ferramentas
tecnológicas avançadíssimas para tentar construir relações políticas
atrasadíssimas, têm clareza de que devem trabalhar pela extinção da democracia.
Só atacam a imprensa para ensaiar o golpe maior. Ainda estão longe de alcançar
o seu intento, é verdade, mas não darão sossego por muito tempo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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