O Globo
Quando se faz o diabo para conseguir votos,
lambuzar-se na gordurama do pastel de feira por puro populismo chega a ser
pecado menor
Demonstrações oportunistas de fé no
Altíssimo e apreço à baixa gastronomia são tão tradicionais nas campanhas
políticas quanto a troca de ofensas entre os novos adversários e de afagos
entre os ofendidos na eleição passada.
Deus é testemunha de que, no Estado laico
em que vivemos, campanha que se preze tem de ter candidato comendo pastel de
feira e/ou em pose contrita — sempre de joelhos, se possível de mãos postas —,
invocando a intercessão divina para ganhar mais voto do que peso. Pode até
haver ateus em aviões que despencam — na propaganda eleitoral, jamais.
Tecnicamente, Estado e Igreja estão separados no Brasil desde 1891. Mas a atual Constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Nas cédulas, há a recomendação de que “Deus seja louvado”. O presidente de turno chegou ao poder com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. É um Deus nos acuda em tempo integral.
Para fazer jus à cidadania brasileira, o
Todo-Poderoso teve de se licenciar de suas inefáveis funções e virar cabo
eleitoral na peleja de 2022. Ele se sentirá em casa por estar, desde a queda de
Lúcifer, engajado nessa luta do Bem contra o Mal. A diferença é que, aqui, o
Mal tem o dom da bilocação — está ao mesmo tempo nos dois cantos do ringue.
Michelle Bolsonaro tem dito que “o Brasil é
do Senhor”, que “Deus tem promessas para o Brasil”, que “aquele lugar [o
Palácio do Planalto] era consagrado a demônios”. Como o inferno são os outros,
para Lula, “se há alguém possuído pelo demônio, é esse Bolsonaro”.
O petista atacou o uso da religião por
parte de seu oponente: “É heresia falar o nome de Deus em vão como fala esse
cidadão (...) que está mais para fariseu que para cristão”. Contudo se permitiu
pregar: “A gente tem que olhar a Bíblia e ela tem que ser cumprida”. A que
preceitos bíblicos estará se referindo? Aos que punem a homossexualidade e
mandam apedrejar mulheres que não chegam virgens ao casamento? Aos mandamentos
que condenam o roubo, o falso testemunho? Deve-se obediência coletiva a livros
sagrados apenas nas teocracias — o que não é o caso. Porém levantamento feito
pelo GLOBO revela que são 902 os candidatos que se declararam sacerdotes ou
integrantes de ordem ou seita religiosa — um quarto a mais que em 2018.
Majoritariamente evangélicos, vêm reforçar a bancada do dízimo — conservadora e
pouco sensível a questões ligadas à laicidade do Estado ou à tolerância para
com a fé alheia.
Rezam as feiquenius difundidas por
bolsonaristas que, em caso de vitória do PT, “brasileiros serão impedidos de
falar em Deus” (restrição que viria a calhar em relação aos que exercem cargos
públicos) e que “templos serão fechados”. Interditar estabelecimentos
caça-níqueis, que enriquecem os empresários da fé com “doações” obtidas
mediante fraude, venda de caneta ungida (para passar em concurso) e de grão de
feijão que cura Covid-19 seria uma ação legítima contra o estelionato. Mas,
para dar cabo dos vendilhões do templo, só Jesus na causa.
Quando se faz o diabo para conseguir votos, lambuzar-se na gordurama do pastel de feira por puro populismo chega a ser um pecado menor.
Um comentário:
Genial o artigo,eu sou espírita-cristão,mas não acredito na Bíblia.
Postar um comentário