domingo, 6 de novembro de 2022

José Cesar Martins* - Como fazer um país

O Estado de S. Paulo

A transição do caos para a esperança precisa contar com os melhores brasileiros, não importam suas simpatias ideológicas.

Logo antes do segundo turno, vimo-nos numa onda de disparates e surrealismo. Agressões a tiros de um Rambo septuagenário e mambembe contra a polícia se somaram à ameaça armada de uma deputada contra um homem negro. Os dois atos são amostra da patacoada bárbara trazida pelo atual presidente.

Passadas as eleições, as excrescências disfuncionais não cessaram, com um bando de exaltados ocupando praças e estradas desrespeitando a ordem e o resultado das urnas, como crianças tiranas que não concordam com o resultado do jogo democrático.

Muito além de partido ou candidato, do outro lado formou-se uma aluvião falando de paz, mudanças e esperança. Gente que quer tocar sua vida, batalhar seu ganha pão, educar os filhos, ter acesso à saúde e segurança.

Tivessem vencido os primeiros, estaríamos condenados à boçalidade como padrão de relacionamento da sociedade consigo mesma e com o mundo lá fora. Mas a sociedade não premiou o mau comportamento. Ela disse basta, queremos fazer um país!

Durante o segundo turno, o grupo Derrubando Muros juntou-se a outros grupos apartidários numa carta de amor ao Brasil: A gente faz um país. O texto é de Antonio Prata; o título, de Mauro Dorfman; e a canção, você sabe, eternizada pela diva Marina Lima. Falamos de solidariedade, empatia, progresso científico, tolerância e justiça. Contra os gritos e as agressões, vestimos a túnica branca dos bons auspícios.

Como eu, a maioria de nós nunca havia votado no PT antes. Mas, por uma destas transcendências da vida, saímos da cabine com a leveza dos que sabem que fizeram o que os valores humanitários mandavam, aproximando-nos da reconciliação e da justiça, inclusive para os que votaram em transe extremista.

O presidente Lula e seu partido têm crédito indiscutível nesta cruzada. Mas a onda cívica foi muito maior do que um partido ou um líder. A aliança dos partidos foi “atropelada” pela união pela base, por pessoas comuns que, descobrimos, tinham muito claro o seu papel. Cidadãs e cidadãos que nunca haviam posto o pé na política se juntaram até com quem divergiam para barrar os que antagonizam com a vida.

Não precisamos de um tratado de Ciência Política para saber que o maior responsável pela vitória foi o povo brasileiro. Todos os demais atores foram coadjuvantes. Lula e Geraldo Alckmin têm responsabilidade histórica. Por imposição do momento, terão de ser maiores que suas biografias. Captando o espírito dos tempos, quando Lula fala em governo dos melhores brasileiros, a expectativa é de uma orquestra de ases pondo o País nos trilhos e conquistando o futuro para todos os brasileiros.

Para estarem à altura do desafio, vão precisar entender que a bricolagem inédita de 2022 não pode ser subestimada como foram as manifestações de 2013, resultando na erupção aberrante de 2018. Os herdeiros da Constituição de 1988 talvez não sejam os mais bem equipados para entender a distopia que a falta de entregas da democracia engendrou. A principal evidência disso é a perplexidade diante dos 58 milhões de eleitores representados por uma extrema direita reconhecida como a mais destrambelhada do planeta.

Há bastante para ser compreendido e mais para ser feito na agenda de passagem ao futuro. Nossos jovens mais bem preparados não podem ter como única saída o aeroporto; a maioria negra não é um problema a ser resolvido, é a solução; e a participação equânime das mulheres tem de ser o novo padrão.

Qualquer coisa menor do que um governo do Brasil para todos os brasileiros seria um erro grave que o presidente Lula já anunciou que não cometerá. Mas, mesmo com os melhores a seu lado, o represamento de dores e exclusões acumuladas demandará uma arquitetura política inovadora como nunca tivemos. Com as tecnologias sociais e políticas incumbentes não será possível construir as mudanças imprescindíveis.

Há vida fora dos partidos e das instituições. O novo governo precisa se conectar colaborativamente e escutar a sociedade mais do que resgatar conselhões de palácio.

Que o presidente Lula é a quintessência da luta por igualdade de oportunidades ninguém pode duvidar. É um privilégio termos Lula para liderar este resgate de milhões de brasileiros para uma vida digna. Que Lula vem com o espírito brando para investir na pacificação do Brasil, disso também não temos dúvida.

Há um desafio, porém, que não espera na fila. O Brasil tem andado de lado, perdeu-se do fluxo de desenvolvimento mundial, e nós precisamos voltar a crescer, gerar empregos e oportunidades qualificadas. Isso é complexo, requer tecnologia de ponta e talentos empreendedores trabalhando num ambiente regulatório eficiente para fecundar o Brasil com a criação de valor de que precisamos.

Está aberta a temporada da competência e do desprendimento, pelo Brasil. A transição do caos para a esperança precisa contar com os melhores brasileiros, não importam suas simpatias ideológicas.

No dia 30 de outubro a gente começou a fazer um país. A consolidação, porém, virá da estabilidade e do compartilhamento do progresso econômico deste Brasil que estamos reinventando.

*Sociólogo, investidor em tecnologia, é coordenador do grupo Derrubando Muros

 

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