quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Vera Magalhães - Um alento em meio à tragédia

O Globo

Lula e Tarcísio demonstraram a maturidade necessária para lidar com a emergência no litoral de forma impessoal

As cenas da tragédia no Litoral Norte de São Paulo evocam outras, em diferentes estados do Brasil, nos últimos anos nesta mesma época. Essa recorrência mostra que o poder público, em seus diferentes níveis de responsabilidade, não consegue fazer investimentos e estabelecer protocolos de prevenção e mitigação do efeito de desastres naturais, cada vez mais intensos e de consequências avassaladoras.

Mas, se há algo de positivo no que se seguiu à destruição no litoral paulista, é a volta da razoabilidade na relação entre os Executivos federal e estadual na reação. Durante anos, Jair Bolsonaro não hesitou em usar mesmo episódios de desolação, com mortos e desabrigados, para colocar em prática seu projeto de dilapidar a política.

Ao transformar governadores e prefeitos em inimigos, pelo simples fato de serem adversários políticos e de pertencerem a partidos de oposição, ajudou a disseminar numa parcela da sociedade o ódio e a intolerância, que explodiram desde que foi proclamado o resultado das eleições e atingiram o ápice no 8 de Janeiro.

É um alento que Tarcísio de Freitas, eleito na esteira do bolsonarismo, vá se distanciando da matriz em episódios que funcionam como teste de convivência institucional entre entes federativos, como a própria resposta aos atos terroristas de janeiro e a calamidade pública de agora.

É aterrador que o óbvio bom senso precise ser louvado, ainda mais quando há dezenas de mortos e milhares de atingidos. Mas basta lembrar que há exatamente um ano o então presidente se recusou a enviar recursos à gestão João Doria para atender a municípios da região Sul do estado atingidos também por enchentes. E que recusou oferta de ajuda humanitária da Argentina quando a Bahia foi devastada pelas chuvas. Na cabeça de Bolsonaro, o fato de o presidente argentino, Alberto Fernández, e o então governador da Bahia, Rui Costa, serem “de esquerda” era o que ditava a diretriz de Estado.

Lula e Tarcísio demonstraram a necessária maturidade para lidar com a emergência no litoral de forma impessoal e com a urgência que a situação exige. E o ambiente político está tão corroído que não faltaram críticas ao governador na “esgotosfera” bolsonarista. Equipes de jornalistas foram agredidas por moradores de um condomínio de luxo numa das praias de São Sebastião ao tentar documentar o estrago das chuvas, aos gritos de “esquerdistas” e “comunistas”.

O episódio mostra a profundidade do dano da conduta antirrepublicana de Bolsonaro na vida em sociedade, a ponto de pessoas que também se viram atingidas por uma calamidade se sentirem mais invadidas e incomodadas pela imprensa, transformada em vilã, que pela intempérie e de abolirem qualquer noção de empatia com aqueles mais desassistidos que, esses sim, perderam tudo e terão de reconstruir sua vida do zero.

Alimentados pela irracionalidade extremista, esses grupos compõem uma parcela do eleitorado de direita no Brasil hoje. Certamente as alas mais radicalizadas voltarão suas baterias contra Tarcísio ou qualquer outro político identificado como conservador que decida ter uma relação civilizada com Lula e o PT. Foi dessa forma que antigos aliados de Bolsonaro foram transformados em traidores e sua reputação e sua carreira política foram destruídas pelas milícias digitais bolsonaristas.

Ainda está por ser criado o espaço para uma direita democrática, que entenda a política como ambiente de debate ideológico e visões de mundo, mas não de aniquilação dos diferentes.

Essa construção passa pelo rompimento do cordão umbilical de toda uma linhagem de políticos que se elegeram graças ao sobrenome do ex-presidente que tentou dinamitar a democracia. Até aqui, ninguém conseguiu fazer essa ruptura e continuar viável eleitoralmente.

 

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