O Estado de S. Paulo.
O comportamento do agente público deve se pautar pela obediência ao princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra
Muito recentemente vimos a baderna e a
selvageria colocarem em risco as instituições nacionais. A reação dos
democratas e dos próprios Poderes constituídos, capitaneados pelo Judiciário,
impediu que o caos e a barbárie se instalassem. Seria mais um passo na jornada
próinstalação de um regime ditatorial para quem se considerava com direitos
despóticos e ilimitados de governança.
Os bens públicos das Casas do Legislativo e do Supremo Tribunal Federal (STF) foram criminosamente danificados. A República foi atingida em seu conceito fundamental de “coisa pública”. Vandalizaram bens da sociedade, bens do povo.
Dois até agora indecifráveis enigmas são a
origem e o porquê do apoio emprestado às tentativas de imposição da desordem,
da intolerância e do ódio no seio da sociedade brasileira. Não me refiro apenas
à adesão dada aos responsáveis políticos, mas sim à concordância com um
pensamento não civilizatório transformado em ações concretas: o armamento
distribuído ao povo (quase 1 milhão de armas); a negação da ciência na
pandemia; a insensibilidade em face dos 700 mil mortos pela covid-19, e quem
despreza a morte não preza a vida, a alheia; o abandono e o menosprezo pela
educação, pelo meio ambiente, pela cultura; a tentativa de destruir avanços
exemplares para o mundo nos campos das eleições (urnas eletrônicas) e da saúde
(sistema de vacinação); os estímulos à destruição das instituições pátrias; a
conclamação à ruptura do Estado de Direito; e várias outras condutas
atentatórias ao regime, à paz e à harmonia sociais. Ideias e comportamentos que
desaguaram no 8 de Janeiro.
Esses apoiadores, muitos esclarecidos e com
capacidade de bem discernir o certo do errado na vida pública, se deixaram
conduzir por um discurso repleto de mentiras e invencionices, distante da
realidade nacional e contrário à lógica e ao bom senso. Sempre em nome de justificativas
abstratas, inconsistentes e falaciosas para a opção que faziam. Por exemplo,
passaram a afirmar que o seu voto era contra o risco “vermelho”: o comunismo
seria implantado. Argumento obtuso, mentiroso, falso, ridículo, próprio dos que
carecem de razões para as suas inconcebíveis escolhas e que põe em dúvida a sua
inteligência e sua honestidade.
O seu ridículo se acentua na medida em que
representa a negação da própria história recente. O mesmo grupo político contra
quem investem esteve no poder durante uma década, e seus integrantes não
atuaram como perigosos militantes stalinistas nem atentaram contra o regime
democrático. Não invadiram nem destruíram órgãos públicos. Não conclamaram as
Forças Armadas a intervir no regime. Não se comportaram como trogloditas
primatas prontos a destruir e matar com vistas à ruína das instituições e da
própria sociedade. Eles não.
Os correligionários do último governo, além
da barbárie que apoiaram, ignoram que seus integrantes não tiveram nenhum
escrúpulo nem respeito por um princípio basilar do regime republicano: o
governante administra bens alheios.
República tem origem no latim res publica,
que significa coisa pública. O que é público é de todos e, portanto, não é de
ninguém. Aqueles que se propõem a militar na política ou na administração
pública têm a obrigação de saber que vão gerir coisa alheia. Trata-se de uma
noção básica, primária, essencial. Caso o administrador não tenha consciência
precisa desse aspecto, não estará habilitado a assumir as funções.
Mas a questão não se resume apenas a uma
noção teórica desta fundamental característica do cargo público. O conceito
deve externar uma conduta pessoal que lhe seja consentânea. Vale dizer, o
comportamento do agente público deve se pautar pela rigorosa obediência ao
princípio de que não pode dispor como quiser do acervo que administra.
Quero destacar apenas uma das formas mais
habituais de ataque ao erário. A imprensa vem noticiando com constância a
despudorada utilização dos chamados cartões corporativos. Está-se revelando um
abuso de gastos jamais visto na história da República. O cartão transformou-se
em passaporte para a entrada livre nos cofres da Nação.
De hotéis e restaurantes de luxo, passando
por grifes famosas, até a compra de guloseimas, em especial sorvetes, esses
gastos representam um exemplo do desavergonhado desrespeito para com a coisa
pública.
Alguém dirá que a lei autoriza o uso dos
cartões. Sim, mas o uso restrito às despesas relacionadas ao exercício das
funções, e não o uso descriterioso, injustificado, ligado a caprichos
consumistas, uso que não fariam se os gastos saíssem de seus bolsos.
Esses esbanjadores do dinheiro alheio
deveriam se espelhar nos exemplos, entre outros, de dom Pedro II, que várias
vezes viajou para fora do País às suas expensas ou auxiliado por amigos. Ou,
ainda, da primeira-dama Nair de Teffé, mulher do ex-presidente Hermes da
Fonseca, que arcava com os custos das recepções que organizava no Palácio do
Catete, sem onerar os cofres públicos.
O desrespeito ao bem público representa o
desrespeito ao Brasil e ao seu povo.
*Advogado
Nenhum comentário:
Postar um comentário