Folha de S. Paulo
Sanha punitivista dos cancelamentos
fragiliza mulheres, que passam a encarar o sexo só pelo prisma do medo
O filme "Tár"
não ganhou o Oscar, mas trouxe à tona o problema do chamado cancelamento. Na
história, a brilhante regente Lydia Tár sofre uma escalada de acusações de
assédio contra suas pupilas e colegas de trabalho. O tribunal das redes sociais
rapidamente a condena. Tár é demitida, não consegue mais emprego de prestígio e
acaba num país pobre do sudeste asiático.
Sem julgamento, contraditório ou defesa, a pena veio. A opacidade da narrativa cinematográfica —nunca sabemos ao certo se a regente de fato fez o que alegam que ela fez— mostra a postura que deveríamos ter sobre acusações online: a da incerteza. Caso contrário, corre-se o risco de destruir vidas de inocentes.
Não apenas isso, estamos fragilizando as mulheres. Tal sanha punitivista gera graves consequências psicológicas, já que afeta a sexualidade. Querer expurgar as relações de poder do sexo expõe ignorância flagrante sobre o funcionamento do erotismo. Não existe ação erótica igualitária, e jogos de poder não implicam necessariamente em violência. Mas as novas gerações estão aprendendo a encarar o desejo sexual só pelo prisma do medo. E o medo é a pior forma de autoconhecimento. Por isso acarreta dominação.
Segundo Espinosa, é uma "paixão triste", o afeto mais manipulado pelo
soberano para garantir a manutenção do poder. Não à toa, governos totalitários,
de direita e de esquerda, são baseados no terror. É até o nome de um período da
Revolução Francesa, durante o qual muitas cabeças rolaram —inclusive a de
Robespierre, líder da revolução.
Vamos destruir a nós mesmas? Apoiamos um
movimento autofágico?
Precisamos escolher afinal que feminismo queremos. O que estimula o medo em jovens mulheres e as deixa vulneráveis, aos homens e ao Estado, ou um que as incentive em direção ao conhecimento da sua sexualidade —o que as torna mais livres e confiantes para lidar com as relações de poder (posto que eróticas) entre os corpos, sejam elas ruins ou deliciosas.
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