O Globo
Como governar sem uma base majoritária
estável?
‘O
inferno são os outros.’ Jean-Paul Sartre referia-se tanto aos alemães
invasores, denominados “os outros” pelos franceses na guerra mundial, como ao
julgamento dos demais, que constrange a liberdade de pensar. Menos
filosófico, Lula também
tem seus “outros”, que são a maioria do Congresso. Como governar sem uma base
majoritária estável? Eis a pergunta que o atormentou nos seus mandatos
pretéritos e volta a afligi-lo no presente.
Nos sistemas parlamentares, o governo nasce de um acordo programático que lhe confere maioria segura no Parlamento. FH só precisou distribuir cargos na máquina estatal para soldar uma maioria no Congresso. É que seu programa econômico — estabilização da moeda, equilíbrio fiscal, privatizações, agências reguladoras — tinha amplo apoio político no Congresso. O PT, porém, sempre governou com um Congresso ideologicamente hostil. Decorre daí que Lula foi obrigado a expandir os limites do “presidencialismo de coalizão” além das fronteiras da legalidade.
O colunismo cortesão formulou uma lenda
sobre os poderes mágicos de articulação política de Lula. Contudo, de fato,
Lula 1 e Lula 2 ergueram uma base majoritária com os tijolos do “mensalão” e o
concreto do “petrolão”. Por motivos óbvios, o expediente da compra direta de
bancadas está interditado a Lula 3, que precisa desbravar atalhos num Congresso
inclinado à direita. O inferno tornou-se mais quente e sombrio.
Nos mandatos anteriores, Lula foi
impulsionado pelo vento de cauda do ciclo internacional de commodities. A
liquidez global estimulava o investimento externo. Os elevados preços dos
produtos básicos geravam vultosas rendas de exportação. Sua política econômica,
crescentemente apoiada no gasto público, em créditos subsidiados e nos
investimentos excessivos das estatais, erodia a produtividade geral da economia
brasileira. Mas o ciclo virtuoso ocultava o problema de fundo, assegurando um
crescimento vigoroso — e a popularidade do presidente. A base governista no
Congresso tinha escassos incentivos para desafiar o Planalto.
Hoje, o inferno é a realidade. A
desglobalização fragmenta a economia mundial em blocos regionais. A China
ingressa em etapa de crescimento mais lento. A pandemia danificou as cadeias
produtivas internacionais. Sob o impacto da guerra na Ucrânia, verifica-se
persistente inflação de preços de energia e alimentos. Nos Estados
Unidos, o banco central retomou a política de juros reais positivos.
No lugar de vento de cauda, vento de proa.
O ciclo econômico global não propicia
espaço para aventuras de expansão fiscal. Nos palanques de campanha, Lula
prometeu ignorar a realidade, restaurando a “idade de ouro” dos seus mandatos
prévios. Depois de subir a rampa, insistiu no mesmo discurso, evidenciando que
não tem plano B. A desarticulação da base governista nominal no Congresso
reflete a ausência de rumo do governo.
Lula lançou-se em campanha com uma coalizão
aberta ao centro (Alckmin, Marina Silva)
e recebeu apoio de um vasto espectro político na disputa do segundo turno
(Tebet, MDB, economistas do Plano Real). Criou-se a oportunidade para a
formação de uma frente democrática de governo sustentada por um acordo
programático. Dela, surgiria uma maioria parlamentar estreita, mas coesa.
Nada feito. A escolha lulista foi governar
com uma frente ampla destituída de consensos programáticos, que se estende até
as franjas do bolsonarismo. Lula almeja restaurar as políticas de seus mandatos
anteriores e, ao mesmo tempo, colher no Congresso votos suficientes para
aprovar as emendas constitucionais que quiser. O inferno chamado realidade vem
provando que são dois objetivos incompatíveis.
Bolsonaro tentou governar sem uma base
parlamentar majoritária. Depois, descreveu um giro de 180 graus e construiu
maioria à base do “orçamento secreto”, um esquema de corrupção legalizado que
acabou impugnado pelo STF.
Diante dos primeiros insucessos no Congresso, Lula ensaia retomar a prática do
antecessor, revestindo-a com enfeites e disfarces. Nesse passo, planta as
sementes de uma nova crise institucional.
Um comentário:
Demétrio sendo Demétrio.
Postar um comentário