Ilustríssima / Folha de S. Paulo
Um dos grandes intelectuais franceses do
século 20, empreendeu releitura permanente de sua obra com espírito de aventura
[Resumo] Renomado
intelectual francês, Alain Touraine morreu no começo do mês, aos 97 anos.
Sociólogo incansável, sem receio de reavaliar as próprias ideias e desbravar
novas frentes de trabalho, analisou toda a série de grandes acontecimentos
históricos que presenciou: a reconfiguração do movimento operário do
pós-guerra, os protestos de Maio de 68, a luta feminista dos 1970, a queda do
Muro de Berlim, a globalização. Nesse percurso, mudou seu modo de entender o
mundo: o terreno da contestação e das mudanças deslocava-se do plano sócio-econômico
para o cultural, sobretudo graças às mulheres e à afirmação de cada pessoa como
"sujeito pessoal".
A
morte de Alain Touraine priva a França de
um de seus últimos grandes intelectuais. Essas figuras tão características da
vida pública francesa foram descritas por Michel Winock em um livro premiado,
"O Século dos Intelectuais".
Definidas por sua importância no mundo das
ideias, eram influentes na política sem necessariamente ocupar posições no
sistema político. Vinham da literatura e do mundo editorial, como André Gide,
ou da filosofia, como Sartre e Simone
de Beauvoir. A particularidade de Touraine foi ter-se construído como
grande intelectual a partir de uma disciplina periférica, a sociologia.
Foi um sociólogo incansável. A importância
que atribuía ao trabalho de campo protegeu-o, no mais das vezes, contra o
descolamento das grandes ideias face à concretude da vida social. Georges
Friedmann, pioneiro da sociologia do trabalho e guia dos primeiros passos do
jovem Touraine como pesquisador, foi por ele descrito como um antigo comunista
que escapava
ao dogmatismo fazendo trabalho de campo.
Touraine foi influenciado por Marx e
pela centralidade da luta de classes no pensamento marxista, mas em lugar de
estudar a luta de classes na história, estudou
empiricamente a consciência de classe dos operários, situando-a no interior
do processo de transformação das relações de trabalho.
Diferentemente de Marx, não considerava essa luta na ótica de uma ruptura revolucionária, mas sim na perspectiva de um conflito central, com impacto sobre a repartição do poder. Um conflito interno aos quadros institucionais democráticos.
Ao contrário dos que se debruçaram sobre os mecanismos da dominação —e Michel Foucault foi, aos seus olhos, o mais importante—, a ele interessaram prioritariamente os movimentos através dos quais a dominação era contestada. Entender os termos dessa contestação, suas dificuldades e seus dilemas, permitiria jogar luz sobre a própria dominação —tal era sua hipótese principal.
Foi longevo (ia completar 98 anos no
próximo mês de agosto) e intelectualmente ativo até o fim. Seu último livro,
"Les Sociétés Modernes", foi publicado em 2022. Sensível às grandes
mudanças históricas de que foi testemunha, empreendeu uma releitura permanente
de sua própria sociologia para que ela não perdesse força de interpretação. A
exemplo de Friedmann, tinha horror ao dogmatismo e por isso não hesitou em
reajustar suas ideias, sempre dentro de um espírito de desbravamento e
aventura.
Sua carreira começou na França do
pós-guerra, quando o trabalho nas fábricas e o conflito industrial eram ainda
centrais. Sobre aquele momento disse, em um livro autobiográfico: "Se
alguém me pedisse para desenhar a sociedade, haveria no seu centro uma fábrica
ou uma mina. Para mim, o mundo operário era o fogo (e eu nunca perdi essa
imagem que hoje se tornou arcaica)".
As primeiras pesquisas permitiram-lhe pôr
em evidência a dupla face da consciência operária: resistência à dominação, mas
também o que ele chamou de consciência "orgulhosa", identificação do
operário ao trabalho e às suas obras. Reconhecimento, como no poema de Vinicius
de Morais, de que era ele quem erguia casas onde antes só havia chão.
Maio de 68, com estudantes e operários nas
ruas, mudou seu modo de entender o mundo. As manifestações, as ocupações de
universidades, a palavra liberada surpreenderam o pequeno mundo da sociologia.
Touraine identificou-se àquelas lutas,
defendeu-as (era professor em Nanterre, e Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes
dos protestos, foi seu aluno) e procurou ver ali o sinal de um novo grande
movimento social, distinto da luta operária, imaginado por ele como portador
dos novos conflitos de uma sociedade nascente.
As lutas feministas dos
anos 1970, em um contexto de refluxo da ação estudantil, tiveram sobre ele
influência mais duradoura. Era evidente a presença ali de um movimento
importante, mas radicalmente diverso, em suas formas, do que havia sido o
movimento operário e mesmo as lutas estudantis em maio de 68.
As mulheres trouxeram para a vida pública
os problemas da vida privada —sexualidade, cuidado com as crianças, cuidado com
a saúde, relação com os homens, relação com as outras mulheres, relação com o
mundo do trabalho. E nada nunca mais foi igual.
Touraine então decretou o fim dos
movimentos sociais tais como ele os entendia: como resistência a uma dominação
de classe exercida no plano das relações de trabalho. Eles teriam perdido
centralidade.
Propôs que se passasse a falar de
movimentos culturais. Isso implicava não apenas um deslocamento no terreno da
contestação, do plano sócio-econômico para o plano cultural; implicava também
um deslocamento nos padrões de mudança.
O movimento feminista foi efetivamente um
poderoso movimento cultural. Embora a dominação masculina se mantenha sob
formas cada vez mais decompostas, houve nesse processo alterações
significativas.
O homem passou a ocupar posições na esfera
privada, reivindicou sua parte no cuidado com as crianças, aprendeu a se
expressar através de categorias afetivas —em suma, absorveu pelo menos parte
daquilo que havia caracterizado a cultura feminina.
Tudo isso teve impacto sobre a própria
sexualidade masculina, que se tornou mais aberta às experimentações, alargando,
na vida pública, o espaço de
emergência de um movimento gay, hoje LGBTQIA+. Note-se como as paradas
passaram a afirmar a importância do "orgulho" gay.
A revolução cultural do último terço do
século 20 levou Touraine a explicitar uma nova categoria de análise: a de
"sujeito pessoal".
Em verdade essa categoria existiu, latente,
desde o início —antes de se tornar um sujeito coletivo e histórico, o operário,
identificado à criatividade do trabalho e às suas obras, era um sujeito
"pessoal"—, mas isso se tornou mais palpável no âmbito dos movimentos
culturais.
E Touraine disse: o que está em jogo nesses
movimentos é a afirmação de si enquanto sujeito, o direito de ser sujeito.
Sujeito de seu próprio corpo, de sua própria sexualidade —afirmação de um
princípio não social de liberdade.
A globalização chegou com força ao fim do
século 20. E, de novo, nada nunca mais foi igual. Imediatamente visível foi o
impacto das redes sócio-técnicas geradas pela popularização da internet.
Impacto sobre a destruição das fronteiras
nacionais, sobre a mobilidade humana e sobre a transformação profunda das
relações de trabalho. Impacto acelerado também pela queda do Muro de Berlim e a
abertura do leste europeu ao capitalismo. Vale dizer, impacto sobre todo o
quadro institucional em que se haviam assentado as democracias europeias no
segundo pós-guerra.
Tudo isso havia sido precedido pela
formação de ilhas de economia neoliberal, no Chile, na Inglaterra e
nos Estados
Unidos. A globalização, porém, transformou essas ilhas em modelos para o
planeta. A verticalidade dos conflitos de classes que antes opunha "os de
cima aos de baixo" foi substituída pela oposição entre "os de fora e
os de dentro".
O tema da "exclusão" e das
"desigualdades sociais" entrou no debate europeu. E emergiu a ideia
de que a Europa estava se latino-americanizando. Touraine respondeu a essa
história em movimento com dois livros.
Em 1988, depois de uma longa estada no
Chile, publicou "Palavra e Sangue: Política e Sociedade na América
Latina", também lançado no Brasil no ano seguinte. A tese central do livro
é de que existiria um modelo de desenvolvimento latino-americano, mas que ele
esbarraria em uma separação entre os de dentro e os de fora, os cidadãos e os
excluídos. Separação que se traduziria em uma incontornável debilidade da ação
coletiva.
Mutatis mutandis, essa situação era também,
cada vez mais, a da Europa, afetada por um importante crescimento da pobreza e
da exclusão. Difícil ser
otimista. Os movimentos haviam saído de cena.
Em 1992, publicou "Crítica da
Modernidade", livro ao mesmo tempo erudito e inquietante. Inquietante
porque sela a morte das sociedades tais como haviam sido até um passado
recente: formas históricas de dominação, mas também condição de formação de
sujeitos.
Nenhuma mediação parecia doravante se
interpor entre o mercado global, a pura economia desenraizada —desencastrada,
diria Polanyi— e o esforço insano dos indivíduos para se construírem como
sujeitos de suas próprias vidas. Situação inquietante, como ensinou o próprio
Polanyi, olhando para outro momento histórico: situação capaz de conduzir ao
fascismo.
Houve, nos anos seguintes, muitos livros
que não será possível comentar aqui. "Crítica da Modernidade" foi, no
entanto, o último marco teórico realmente importante, porque fixou as bases de
análise da conjuntura histórica que ainda estamos atravessando.
A afirmação mais significativa, desde
então, foi provavelmente a da centralidade
da mulher enquanto figura de uma possível recomposição do mundo: pela
capacidade que demonstrou em romper com a separação entre o público e o
privado, pelo esforço em reunir as duas metades antes separadas de que é feita
a vida —a esfera do cuidado e do afeto, a casa e a participação na economia, a
resposta às exigências da vida profissional, a rua.
Dois livros registraram essa ideia de
recomposição do mundo: "Um Novo Paradigma – Para Compreender o Mundo de
Hoje", publicado no Brasil em 2007, e, no ano seguinte, "O Mundo das
Mulheres".
Na América Latina e no Brasil
particularmente, Touraine foi reconhecido como um grande intelectual, na
acepção francesa da palavra. Todavia, a influência de suas ideias sobre a
universidade foi modesta.
Seus livros foram traduzidos, mas não
lidos. São de leitura difícil e, nessa última fase principalmente, dialogam com
processos de decomposição das sociedades europeias, uma realidade que nos é
estranha e que temos dificuldade em apreender.
Neste quinquagésimo aniversário do golpe
contra Allende, eu não poderia terminar sem lembrar que Alain Touraine foi um
grande amigo do Chile. Casou-se com uma chilena, Adriana, mãe de seus dois
filhos. E viveu em Santiago a derrocada da UP (Unidade Popular), coalizão
partidária liderada por Allende, que relatou em um diário de bordo: "Vida
e Morte do Chile Popular".
*Socióloga, foi pesquisadora, por 10 anos, no último laboratório criado e dirigido por Alain Touraine, o Centro de Análise e de Intervenção Sociológicas (Cadis), na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris
Um comentário:
■Sim!
▪Viva Alain Touraine!
▪Viva o antidogmatismo!
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