quarta-feira, 20 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

 

Lula acerta o tom e o conteúdo em discurso na ONU O Globo 

Pronunciamento contribui para Brasil recuperar prestígio perdido no cenário internacional 


Depois de 14 anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a discursar na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. De modo oportuno, enfatizou temas que têm ocupado sua atenção em fóruns internacionais: a defesa do multilateralismo — eixo fundamental da política externa brasileira —, a urgência no enfrentamento das mudanças climáticas, o necessário combate à fome e à desigualdade, a discussão sobre uma nova governança mundial. De modo geral, Lula acertou o tom. 


Mais uma vez, tentou deixar claro que “o Brasil está de volta”. Foi uma forma de se contrapor à política externa isolacionista praticada pelo antecessor. O governo Jair Bolsonaro afastou o país dos fóruns internacionais e o transformou no proverbial “pária”, nas palavras de um ex-chanceler. Desde que assumiu, Lula tem procurado marcar posição e frequentado toda sorte de encontro no exterior, em busca de um novo protagonismo brasileiro no cenário mundial. “O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo”, afirmou em seu discurso. “Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos.” 


Nada mais oportuno do que reafirmar a essência da tradição diplomática brasileira. Em vez de tentar distribuir agrados ou enviar mensagens a governos com que tem afinidade ideológica, Lula acertou ao destacar os maiores desafios internacionais do Brasil e do mundo. A começar pela crise climática. Prestou solidariedade às vítimas das chuvas na Líbia e no Rio Grande do Sul, aproveitando para, acertadamente, cobrar dos países ricos recursos prometidos para os planos de adaptação às mudanças no clima. A ideia de destinar R$ 100 bilhões anualmente aos países em desenvolvimento, segundo Lula, permanece uma “longa promessa”. A demanda já chega à casa dos trilhões e, disse ele, “sem a mobilização de recursos financeiros e tecnológicos, não há como implementar o que decidimos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade”. 


Lula também acertou ao falar do assunto hoje mais sensível para os parceiros ocidentais do Brasil: a Ucrânia. “A guerra na Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU”, afirmou. Disse ainda ser necessário “criar espaço para negociações”. Não condenou a invasão pela Rússia, mas soube manter postura construtiva num tema que já lhe rendeu um sem-número de gafes. Também criticou, falando de Cuba, sanções unilaterais que causam prejuízo às populações. 

Fome e desigualdade ocuparam lugar de destaque. “Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade”, disse Lula. Ele reconheceu que as metas de desenvolvimento da ONU podem fracassar e prometeu não medir esforços para, ao assumir a presidência do G20, pôr o combate às desigualdades no centro da agenda internacional.

 

Em que pesem autoelogios previsíveis à reativação do Bolsa Família ou à queda do desmatamento na Amazônia, o discurso ajuda o Brasil a recuperar prestígio global, depois do desempenho decepcionante nos quatro anos de Bolsonaro. Restituir a tradição da política externa brasileira é um avanço. O desafio de Lula será saber manter o país aberto à comunidade internacional, evitando a confusão frequente entre política externa e ideologia. 

Maior celeridade não justifica o atropelo nas votações da Câmara 

O Globo 


Pelo menos dez projetos relevantes foram aprovados pelos deputados sem seguir o trâmite regular das comissões 


É bem-vinda a celeridade na apreciação de projetos de interesse da sociedade pelo Congresso. O mesmo não se pode dizer do atropelo, a celeridade de conveniência que salta fases da tramitação, impedindo o debate legislativo saudável, essencial para depurar propostas controversas mediante o escrutínio da opinião pública. 


Reportagem do GLOBO mapeou ao menos dez projetos que mereceriam debate mais amplo, cuja tramitação foi, porém, acelerada. É o caso da minirreforma eleitoral, que afrouxa as regras em vigor para beneficiar partidos e candidatos. Apenas quatro horas depois da aprovação do requerimento de urgência, os deputados aprovaram o texto-base, sem que ele passasse pelas comissões da Câmara. A versão final só veio a público às vésperas da votação. 

O trâmite regular também foi atropelado no caso do projeto que pune a discriminação contra cidadãos identificados como “pessoas politicamente expostas” (ele tipifica crimes cometidos contra alguém apenas por ser político). De nada adiantou deputados de oposição protestarem por não terem obtido acesso à versão atualizada do texto. A proposta foi aprovada tarde da noite sem passar por nenhuma comissão temática da Câmara. 


Na lista das votações-relâmpago estão também o projeto que alterou a Lei das Estatais, reduzindo a quarentena para indicados a cargos de presidente ou diretor de empresas públicas; o do marco temporal, que restringe a demarcação de terras indígenas; o pacote que dá autonomia ao Ministério da Agricultura para registrar novos agrotóxicos; a legalização de cassinos, bingos, jogo do bicho e plataformas digitais de apostas. 


Essas votações às pressas foram facilitadas pela alteração do regimento interno da Câmara que, em 2021, reduziu o poder de obstrução de parlamentares, sob o pretexto de agilizar os trabalhos. É compreensível que, na época, em plena pandemia, fizesse sentido acelerar o trâmite de matérias em razão da situação excepcional. Mas a pandemia passou. Ainda que as propostas votadas sem maiores discussões sejam apoiadas por um leque grande de partidos, e mesmo que sejam depois examinadas no Senado, elas mereceriam mais discussão. 


O Legislativo é o espaço para debater tudo o que afeta a vida dos cidadãos. A passagem pelas diversas comissões, onde há parlamentares especializados nos temas discutidos, tende a aperfeiçoar as propostas. O trâmite no tempo certo, sem atropelo, também é importante para que a sociedade possa acompanhar a discussão. É assim que funciona uma democracia. Votações-relâmpago de temas complexos, por vezes controversos, são uma deturpação do propósito das Casas legislativas. 

Sindicatos precisam se adaptar às novas formas de trabalho 

Valor Econômico 


No Brasil, não se discute uma solução para fortalecê-los que passe pela necessária modernização substantiva de práticas e métodos para ampliar suas bases 


No mesmo ano em que um ex-líder sindical metalúrgico, Luiz Inácio Lula da Silva, foi eleito para ocupar a Presidência da República pela terceira vez, o Brasil viu sua taxa de sindicalização cair abaixo dos 10%, a mais baixa registrada nos últimos dez anos, desde o início da série estatística. “A retração avança em todos os segmentos da ocupação”, concluiu Adriana Beringui, coordenadora das pesquisas por amostra de domicílios do IBGE, ao anunciar que, em 2022, apenas 9,2% dos 99,6 milhões de pessoas ocupadas estavam filiadas a sindicatos. Há dez anos, eram 16,1%, ou 14,4 milhões de pessoas de um contingente menor ocupado, de 89,7 milhões. O esvaziamento sindical não é uma exceção brasileira, mas fenômeno global. O sindicalismo de base industrial definha, à medida em que a indústria perde espaço no universo do trabalho e os serviços se consolidam como locus principal dos empregos. 


Globalização, avanço da tecnologia da informação e, agora, da inteligência artificial estão mudando sem cessar as formas de divisão e organização do trabalho, desde localização física à remuneração e à proteção. A desindustrialização mundial é a face visível de reviravoltas profundas, ainda que no Brasil ela possa ser tachada de “precoce”. A média de 18 países industrializados avançados da Europa Ocidental e da América do Norte indica que a taxa de sindicalização da indústria (inclui extrativa) declinou de 43% em 1980 para 22,5% em 2015, segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (autoria de Jelle Visser, preparado para o centenário da OIT). 


Neles, a indústria de transformação abriga 17% do total de sindicalizados. Nos países desenvolvidos, a indústria manufatureira ocupa 16% da mão de obra total, nos de rendimento médio-baixo (como o Brasil), 12%, e apenas 6% nos países em desenvolvimento. Segundo o IBGE, a população ocupada na indústria brasileira recuou de 14,5% para 12,8% do total em dez anos. Por outro lado, três em cada quatro empregados em países ricos estão alocados no setor de serviços, proporção não muito diferente da dos países de renda média. A perda de peso relativo da indústria atingiu o coração dos sindicatos, mesmo nos países desenvolvidos. No Brasil, antes mesmo da revolução da TI, as organizações sempre foram mais fracas, não só por serem apêndices do Estado e financiadas por ele, mas devido às características do mercado de trabalho local - a informalidade soma 39,6% da população ocupada. Em todo o mundo, 61,2%, ou dois bilhões de pessoas, segundo a OIT. 


Micro e pequenas empresas, que predominam em serviços, sempre foram um desafio prático à organização sindical. Mais da metade da população brasileira ocupada (60,8%) está alocada em empresas com 1 a 10 pessoas, e só 28% nas com mais de 50 pessoas. As grandes empresas, em todo o mundo, foram por um bom tempo fortalezas sindicais, mas isso também está mudando. 


Embora a queda da representação sindical se arraste por décadas, há alguns marcos nessa trajetória descendente. Pelo estudo da OIT, foi a grande crise financeira de 2008, a partir da qual, mesmo com o aumento do emprego, o contingente sindical não só não cresceu como involuiu. No Brasil, pelos números do IBGE, isso ocorreu a partir da recessão de 2015-2016. Os avanços tecnológicos se disseminaram, criando um ambiente menos propício à sindicalização. Estatísticas da primeira fase da revolução digital, escreve Visser, mostram recuo da fatia de vagas nos empregos especializados e semiespecializados na indústria, “os mesmos empregos que foram moldados com a ajuda dos sindicatos na sua longa história e aos quais estes devem o seu grupo nuclear de sócios e a sua influência na política e nas relações industriais”. 


Além disso, a base dos sindicatos envelheceu. Os jovens trabalhadores manuais não especializados e os com apenas o ensino básico passam longe das organizações. É um problema sério: “Trabalhadores que não se filiaram num sindicato antes dos 30 ou 35 anos provavelmente nunca o farão”, aponta o estudo. As transformações em curso serão aceleradas e aprofundadas pela inteligência artificial, com pulverização ainda maior das formas de trabalho, de jornada e de remuneração. A descentralização através do trabalho em rede, a subcontratação e a divisão do trabalho em tarefas individuais atomizam radicalmente a mão de obra e, com isso, ampliam a dificuldade de organizá-la. A mudança lembra a produção domiciliar dos primórdios do capitalismo em uma “versão atualizada com supervisão eletrônica”, ressalta Visser. 


Se a tendência das últimas décadas se mantiver, os sindicatos correm o risco de desaparecer ou, na melhor das hipóteses, da irrelevância. No Brasil, não se discute uma solução para fortalecê-los que passe pela necessária modernização substantiva de práticas e métodos para ampliar suas bases. A sobrevivência e a atuação construtiva dos sindicatos são, porém, constitutivas da vida democrática. Adaptá-los às novas formas de trabalho é uma corrida contra o tempo. 


Lula na ONU 

Folha de S. Paulo 


Discurso fincou-se em aspirações e potencialidades da sociedade brasileira 

 

A segura manifestação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas reforça a impressão de que ele evitaria as derrapagens sobre temas de política externa se confiasse mais em planejamento e menos em improviso. 

Raramente esse rito anual da ONU detém centralidade no grande jogo da geopolítica. A ausência dos chefes de governo de China, Rússia e Índia não contribuiu para fazer da sessão inaugural de 2023 uma exceção à regra. 


No caso do Brasil, a expectativa estava naturalmente eriçada em razão de esta ter sido a primeira intervenção de Lula em seu terceiro mandato, após quatro anos de uma administração abrutalhada em assuntos diplomáticos, que se jactava de figurar como pária global. 

O contraste deu-se como esperado. O governante do PT fincou os pilares do seu discurso em conhecidas aspirações e potencialidades da sociedade democrática brasileira. Destacaram-se o multilateralismo, o combate à pobreza e às desigualdades e a transição para a economia de baixo carbono.

 

Apresentar os primeiros indicadores de redução no desflorestamento amazônico e cobrar das nações desenvolvidas os instrumentos e recursos necessários e prometidos para alavancar esse processo é uma moeda de alto valor, a qual o mandatário brasileiro tem sabido utilizar nas suas comunicações com a comunidade internacional. 

A menção discreta à Carta da ONU, violada com a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, evitou a reincidência de Lula nas trapalhadas sobre o conflito no Leste Europeu. A Constituição de 1988, que elege os direitos humanos, a autodeterminação dos povos e a não intervenção como princípios das relações internacionais do Brasil, também poderia ter sido evocada. 


O mundo tornou-se mais complicado do que era na primeira passagem de Lula pelo Planalto. A disputa entre o que o presidente chamou de "nacionalismo primitivo" e as correntes democráticas replica-se não apenas na relação entre as nações, mas também nas disputas políticas das sociedades abertas. 


Cobra seu preço em desgaste a artimanha de declarar-se democrata da fronteira para dentro, mas afagar autocratas amigos fora. Por isso é sempre melhor centrar esforços naqueles temas que interessam sobretudo ao bem-estar material da população brasileira. 


O Brasil não deveria tomar como prioridade a reforma da ordem global; seu papel na transição ambiental e energética será mais relevante. Manter relações diplomáticas e comerciais com todos os países e expressar, nos foros e na linguagem adequados, o seu apreço pelas liberdades civis e os direitos humanos é o melhor caminho a seguir. 


Microgastança 

Folha de Paulo 


Governo dá mau sinal ao elevar até despesas de menor dimensão e relevância 


Antes e depois da posse presidencial, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promoveu aumentos de caráter permanente nas principais rubricas do Orçamento federal. 


Ainda na transição, negociou-se com o Congresso uma despesa extra muito superior à necessária para preservar o Bolsa Família —que havia sido expandido, sob o nome de Auxílio Brasil, na ofensiva eleitoreira de Jair Bolsonaro (PL). 


Neste ano, foi recriada a política de valorização do salário mínimo referenciada no crescimento da economia, o que impacta os pagamentos de benefícios previdenciários e assistenciais; concedeu-se reajuste salarial aos servidores; definiu-se que as verbas para saúde e educação voltarão a seguir percentuais fixos da receita. 


O ímpeto gastador, vai-se percebendo, não está limitado às grandes categorias orçamentárias, que movimentam dezenas ou centenas de bilhões de reais. A prodigalidade se repete em rubricas muito menores —e de relevância muito mais questionável. 


Como noticiou a Folhao governo alocou um volume recorde de recursos para publicidade oficial no próximo ano, de R$ 647 milhões, bem acima dos R$ 359 milhões autorizados neste 2023. 

Em escala ainda menor, leu-se neste jornal que os desembolsos de Lula no cartão corporativo alcançam uma média mensal de R$ 1,1 milhão, superando os dos antecessores Bolsonaro, Michel Temer (MDB) e Dilma Rousseff (PT). 


É evidente que, em separado, nenhuma dessas despesas —assim como a eventual compra de um novo avião presidencial ou mesmo a criação de novos cargos de ministro— terá impacto relevante no déficit do Tesouro Nacional, de R$ 145 bilhões esperados neste ano (sem contar encargos com juros). 


A sinalização, de todo modo, é ruim. Gastos com publicidade, não raro em benefício político do governo, e cartão corporativo, um conforto de necessidade duvidosa para o governante, já foram motivos de desgaste nos primeiros mandatos de Lula, quando a situação das contas públicas era muito melhor. 


Em um primeiro ano de mandato, o período mais propício para ajustes fiscais, o governo petista nem mesmo busca aparentar alguma preocupação com a austeridade, já achincalhada em discursos do presidente. 

Cria-se um incentivo para demandas de todas as dimensões, seja nos ministérios, seja nos partidos instalados no Congresso. 


Reiterado desrespeito à Constituição 

O Estado de S. Paulo  


Continuidade da disputa fratricida entre Câmara e Senado por protagonismo nas MPs expõe as falhas na articulação política do governo e o desdém pelo texto constitucional 


Em abril, depois de meses de disputa no Legislativo, o governo anunciou ter chegado a um acordo com a cúpula do Congresso para retomar o rito ordinário de tramitação das medidas provisórias (MPs), alterado em razão da pandemia de covid-19. Pela proposta, o Executivo se comprometeu a ser mais contido no envio desse tipo de instrumento, enquanto a Câmara concordou com o retorno das comissões especiais, colegiados formados por deputados e senadores responsáveis por emitir um parecer sobre os textos antes de submetê-los ao plenário. 

 

A princípio, o fim desse imbróglio foi interpretado como uma vitória do Senado e uma derrota da Câmara. Semanas antes, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), havia assinado um ato da Mesa Diretora determinando o retorno do rito ordinário das medidas provisórias. O ato, no entanto, não foi referendado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que preferia manter a tramitação expressa das MPs diretamente em plenário, suprimindo as comissões especiais. 

 

À luz dos fatos, não se tratava de uma disputa entre a Câmara e o Senado ou entre suas lideranças, mas da prevalência da Constituição, que definiu, em seu artigo 62, um conjunto de regras sobre as medidas provisórias. Fruto de uma emenda constitucional aprovada em 2001, tal artigo não deixou qualquer dúvida sobre a necessidade de instalação das comissões especiais para apreciá-las. Por essa razão, esse pacto foi elogiado por este jornal. 

 

O que tem ocorrido desde então, no entanto, evidencia o real valor de face do acordo envolvendo o Executivo e o Legislativo. De janeiro a setembro, o governo contabiliza 6 MPs convertidas em lei e 14 MPs com vigência encerrada – ou seja, propostas que perderam validade sem que tenham sido aprovadas. Outras 13 MPs estão em tramitação, mas já se sabe que uma boa parte delas também deve caducar. 

 

Parte desse resultado pode ser atribuída às falhas de articulação política do governo no Congresso. Na maioria dos casos, porém, é mera consequência de uma decisão de Lira. A despeito do acordo, o deputado orientou as lideranças partidárias da Câmara a não indicar membros para as comissões especiais, o que atravanca o avanço das MPs. Para não afrontar o sr. Lira e conter o tamanho da derrota na Câmara, o governo tem replicado o conteúdo de algumas dessas MPs em projetos de lei que tramitam em regime de urgência. 

 

O prazo para apreciação dos projetos de lei em regime de urgência é muito semelhante ao das medidas provisórias. A diferença, no entanto, é sutil. Projetos de lei sempre começam a tramitar pela Câmara e só depois chegam ao Senado; em regime de urgência, a apreciação das comissões é dispensada e substituída pela votação em plenário. Na prática, essa tem sido uma forma disfarçada de manter o rito pandêmico de tramitação de MPs ad aeternum, exatamente como Lira desejava. 

 

A manobra expõe o desrespeito com que a Constituição tem sido reiteradamente tratada. Se o texto constitucional fosse seguido à risca, não seria necessário firmar qualquer acordo sobre as medidas provisórias. Ao Planalto, bastaria atender aos requisitos de relevância e urgência para editá-las, o que daria mais respaldo a um instrumento que deveria ser excepcional, uma vez que tem força de lei na data em que é publicado. 


À Câmara e ao Senado, bastaria indicar deputados e senadores para debater as propostas no colegiado com profundidade e rigor. As comissões mistas, afinal, são uma forma de equilibrar os poderes e conter o imenso poder que a edição de medidas provisórias conferiu ao Executivo. 

 

Se a Câmara considera haver distorções representativas na composição das comissões ou aperfeiçoamentos a serem feitos no rito de tramitação das medidas provisórias, a solução é apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterá-lo. Basta angariar o apoio de um terço dos deputados e, depois, reunir maioria qualificada para aprová-la na Câmara e no Senado. O que é absolutamente indesejável é a continuidade desta disputa fratricida por protagonismo político na qual a sociedade é a verdadeira derrotada.  


Distorções no orçamento municipal 

O Estado de S. Paulo

 

Estudo confirma engessamento orçamentário dos municípios, incapazes de investir em infraestrutura para lidar com aumento da população urbana. Passa da hora de rever essa distorção 


Um levantamento feito pelo Observatório de Informações Municipais (OIM), publicado pelo jornal Valor há poucos dias, mostra que, nos últimos 50 anos, os investimentos das prefeituras em serviços urbanos e construção e manutenção de infraestrutura despencaram ao mesmo tempo que aumentaram substancialmente os gastos com saúde e educação. 

 

Segundo o OIM, as despesas dos municípios com serviços urbanos, entre 1972 e 2022, caíram de 27,41% das despesas totais para 9,89%. Por outro lado, os gastos com saúde saltaram de 5,67% para 25,49% no mesmo período, em média. Já na área de educação, as despesas praticamente dobraram, saltando de 14,82% para 26,76%. 

 

Ou seja, os recursos dos municípios, já escassos, são ainda mais comprimidos por obrigações constitucionais que nem sempre dialogam com a realidade e as necessidades de cada cidade. Como bem lembrou um especialista em urbanismo citado pelo Valor, as verbas para a saúde serão sempre insuficientes se não houver investimentos, por exemplo, em saneamento básico. 

 

A questão de fundo é que a Constituição de 1988 é municipalista. Sob os auspícios da ordem liberal democrática restaurada havia pouco tempo, a Assembleia Constituinte entendeu ser o caso de conferir aos municípios maior protagonismo no federalismo brasileiro. E isso se traduziu, basicamente, num novo modelo de distribuição dos recursos advindos da arrecadação e, sobretudo, numa redefinição de responsabilidades pela concepção e implementação de políticas públicas. 

 

No papel, tudo parecia perfeito. Afinal, como dizia o ex-governador de São Paulo André Franco Montoro, um dos mais notáveis municipalistas brasileiros, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no município”. Porém, transcorridos quase 35 anos de vigência da “Constituição Cidadã”, e a despeito das boas intenções dos constituintes originários, aquele arranjo constitucional que alçou os municípios a um outro patamar de autonomia na organização política da República produziu uma anomalia que, em larga medida, tem afetado justamente aqueles que haveriam de ser os grandes beneficiários do novo pacto federativo: os próprios munícipes. 

 

Ao aumento substancial das atribuições dos municípios – e, portanto, de sua parcela de contribuição para o bem-estar geral dos cidadãos – não correspondeu um incremento de receitas à altura dessas novas responsabilidades. Para piorar o quadro, a descentralização política consagrada pela Constituição de 1988 foi regulamentada “de maneira pouco organizada” desde a promulgação da Lei Maior, como bem notaram os pesquisadores Miguel Lago e Francisco Gaetani em A construção de um Estado para o Século XXI (Ed. Cobogó, 2022). Isso gerou uma espécie de limbo político-administrativo que não raro atrapalha, quando não impede, a formulação e a execução de políticas públicas aptas a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Ao fim e ao cabo, não é outra a principal missão de qualquer governo, nas três esferas da administração. 

 

Menos do que propriamente conflitos de competência, às vezes a mera dúvida sobre qual ente federativo é responsável por determinada prestação de serviço público já basta para que os cidadãos simplesmente não tenham acesso ao serviço ou este seja prestado com qualidade aquém da necessária – e sem que haja um responsável claramente identificável a quem recorrer. 

 

A um primeiro olhar, parece paradoxal a ideia de que investir mais em áreas tão vitais, literalmente, para os cidadãos, como saúde e educação, possa ser algo ruim. Contudo, o engessamento dos orçamentos municipais, somado à confusão criada por aquele limbo político-administrativo, ajuda a entender por que a grande maioria dos munícipes nem é bem atendida por serviços de saúde e educação nem vive em cidades bem organizadas do ponto de vista urbanístico. Passa da hora de um honesto debate nacional sobre essas distorções, não para rever postulados da Lei Maior, mas, antes, para fazê-los valer em sua plenitude.  

 

A banalidade do mal 

O Estado de S. Paulo

 

Mais uma criança morre vítima de policiais treinados para guerra, e não para segurança pública 


A morte da menina Heloísa dos Santos Silva, de três anos, após nove dias de luta pela vida em uma UTI, é o mais recente e trágico exemplo do despreparo policial que espalha vítimas inocentes em atuações desastrosas, sobretudo crianças, as mais vulneráveis dentre os vulneráveis. Heloísa não resistiu ao tiro de fuzil que lhe transpassou a cabeça e a coluna durante uma inimaginável abordagem policial ao veículo em que viajava, junto com outros quatro integrantes de sua família, de volta para casa depois do feriado de 7 de Setembro, na Baixada Fluminense (RJ). 

 

O assombro diante de uma ação tão truculenta quanto incompetente aumenta por vir de policiais rodoviários federais, que têm como principal função, definida pela Constituição, fiscalizar o trânsito em vias federais. Ao contrário de outras forças policiais, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) não figurava, até um passado recente, no noticiário envolvendo assassinatos em operações de repressão. Muito menos de casos como esse, em que uma família tem o carro alvejado porque os policiais desconfiaram tratar-se de bandidos. 

 

Caso mais típico de criminosa imperícia, impossível: o pai de Heloísa, ao volante, ao perceber a aproximação policial, liga a seta informando que vai parar no acostamento e recebe uma fuzilaria como resposta. Ao desespero dos policiais ao perceberem que acertaram a criança, com vários tiros, seguiram-se tentativas de distorcer os fatos. Primeiro, um dos policiais disse que reagiu porque ouviu barulho de tiros, o que testemunhas negam. Depois, a PRF informou que o carro em questão já havia sido dado como roubado, o que teria chamado a atenção dos policiais. 

 

Nenhuma dessas explicações, contudo, justifica o descomunal despreparo policial e o perigo que isso representa para toda a sociedade, sendo as crianças, como já dissemos neste espaço, os alvos mais vulneráveis a tamanha brutalidade. 

 

Há cinco anos, um dos primeiros atos do governo Bolsonaro foi ampliar as funções da PRF dando aos agentes também a competência de reprimir crimes, não só nas rodovias, como em quaisquer “áreas de interesse da União”. O que se viu, desde então, foi uma recorrência de ações funestas de uma polícia que não tinha esse histórico. Em um dos episódios mais violentos, em 2021, agentes da PRF participaram de uma ação que resultou na morte de 25 suspeitos de planejar um assalto a banco em Minas Gerais. Nenhum policial ficou ferido. “Só vagabundos reclamarão”, festejou na época o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do então presidente Jair Bolsonaro. 

 

O caso Heloísa, porém, é um dos mais significativos do risco que representa uma guarda armada e desqualificada. Para piorar, surgem do Ministério Público Federal denúncias de que agentes da PRF estiveram no hospital onde a menina estava internada para intimidar a família, como revelou o Estadão. 

 

Punição rigorosa para os agentes envolvidos no caso é o mínimo que se espera. Mas não apenas isso. É preciso que cada força policial receba treinamento eficaz em suas áreas de atuação. Não se pode tratar a segurança pública como se fosse uma guerra, e a morte de crianças, como se fossem baixas.  

 

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